Nossa Senhora da Tosse





Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos campos, no ar e no recordar de quem já passou vezes sem conta pelo mesmo lugar. Cheguei ao cruzamento e não fui para onde comecei a pensar ir. Não ir por onde se pensa é a melhor forma de encontrar o desconhecido. - Vais por aqui? - Vou. É só para dar uma volta pela povoação. Depois voltamos à estrada. Meti-me pelas ruelas estreitas, com casas velhas e abandonadas e outras ainda orgulhosas dos seus passados senhoriais. Passei pelo largo, "Largo da Cadeia", e não vi sinal de nenhuma. O tempo apagou-a. Apenas uma pequena capela, a relembrar a origem românica, me chamou a atenção. A porta estava aberta. Antecipei a reprimenda. - Não me digas que vais vê-la? - Não! Está muito calor. No íntimo quis entrar e ver o seu conteúdo. Continuei a andar e passei por um belo solar muito bem conservado. Uma preciosidade, um encanto, um paraíso. Continuei, na esperança de encontrar a ligação à estrada, mas esbarrei na igreja. Não tinha saída. Tive de entrar no adro para fazer a inversão de marcha. Claro que nunca me passou pela cabeça ver o seu interior. No entanto, duas sepulturas antropomórficas, com cabeceiras, o que não é habitual, chamaram-me a atenção. - Pelo menos já ganhei a tarde. No adro, estava estacionada uma carrinha branca. O senhor começou a fazer sinais. Pensei que estaria a perguntar se estava a incomodar para fazer a inversão de marcha. Acenei dizendo que não. Voltou a fazer os mesmos sinais. Baixei o vidro e ouvi: - Veio ver a igreja? Perante uma pergunta feita nestes termos, e na expetativa de ver o seu interior, menti: - Vim sim senhor. Olhou para o colega e explicou a situação. - Está com sorte. Ainda temos algum tempo. Viemos trazer uma santa e já íamos embora. Saí. Parecia um foguete e deixei tudo aberto para não perder um segundo. Abriram a igreja. Foram de uma amabilidade e cordialidade sem limites. Conversadores natos. Viram o meu interesse. Perguntaram quem eu era e de onde vinha. Enfim. Em pouco tempo fiquei a conhecer um pouco da história da igreja e do local. Mostraram-me as imagens, mas houve uma que me chamou a atenção. Na esquina de um altar lateral, onde predominava um belo e gigantesco Cristo, que me apeteceu chamar de dançarino, apontaram para uma pequena imagem. De todas as imagens aquela que o povo mais aprecia é esta. Vi uma Santa Ana, com a Nossa Senhora ao colo que, por sua vez, segurava o filho. Uma bela e original imagem sem dúvida. Muito antiga. - Sabe como é que o povo a chama? - Não. - É a Nossa Senhora da Tosse. Fiquei de boca aberta, porque era a primeira vez que ouvia tal designação. Já ouvi inúmeras, obviamente, mas esta era mesmo de truz. Continuámos na conversa, até os "Bandidos da Beira" vieram à baila, tudo porque estava na zona onde foram reis e senhores durante o século dezanove. Um encanto de tarde. Matéria para dissertar até dizer basta. No regresso passei pela velha capela e acabei de ver uma encantadora Pietá. 
- Mas afinal porque é que chamam à imagem, Senhora da Tosse? Sorri e divaguei. As designações que dão à Nossa Senhora tanto depende do local, dos atributos, da experiência da vida e dos mais diversos acontecimentos. Quem lhe dá o apelido é o povo. - Se a chamam de Nossa Senhora da Tosse é porque na altura seria a última salvação para os problemas de saúde que por aqui reinaram. Fome, miséria, doenças debilitantes, tuberculose, tosse. O que é os desgraçados de então podiam fazer? Rezar à Nossa Senhora. Alguém deverá ter melhorado ou mesmo curado da sua doença e a publicidade na altura, que era capaz de ser mais rápida do que toda a informática dos nossos dias, fez o resto. Doença pulmonar? Tuberculose maldita? Tosse? O melhor é ir rezar à Nossa Senhora da Tosse...
(Imagem que se encontra na Igreja de Ervedal da Beira)

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