Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2015

"Renascer"

Tarde rotineira. Ver trabalhadores, na sua maioria saudáveis ou sem grandes problemas, não é estimulante, apenas justifica a necessidade de cumprir as regras e fomentar a prevenção que tanta falta faz entre nós. Aspeto elegante, solta nos gestos, com um à-vontade construído ao longo de uma vida ainda curta, respondia às perguntas com calma e alguma curiosidade. Vi, perfeitamente, que era uma mulher perspicaz, socialmente reconhecida e culturalmente distinta. Agradou-me a atitude; transbordava simpatia e tranquilidade. Subitamente, fui obrigado a engolir em seco. Tremi e assustei-me. Contou-me que tinha estado de baixa devido a cancro da mama. Os meus olhos saltaram do seu rosto à procura da data do nascimento. Fiz os cálculos sem esforço. Tinha 36 anos de idade e foi operada há pouco mais de um ano. – Também fiz quimioterapia. Disse com um sorriso muito discreto. É natural, pensei. A forma como ia descrevendo os acontecimentos, com calma e muita confiança, mexeu comigo. Confesso que

Indiferença

Mais um dia na vida de uma pessoa. Retenho alguns apontamentos. Trabalho, dedicação, meias surpresas, dois ou três sorrisos gratuitos, algumas conversas cheias de informação e de esclarecimentos, orientações, ajudas e expectativas cinzentas a quererem marcar o pêndulo da vida. Um dia como qualquer outro, um dia condenado ao esquecimento. O sentimento da indiferença e as sombras do amanhã apossaram-se de mim como se fossem insetos esfomeados de sangue. Bem tentei afastá-los mas não consegui. Ainda tinha mais uma tarefa a cumprir ao fim da tarde. Antes de a iniciar, uma pequena conversa, informal, ultrapassou e apagou tudo o que eu considerava como indiferença e sombras. Um drama contado na primeira pessoa que me fez compreender, mais uma vez, que os reais problemas não são os que julgamos sentir, mas sim os que ouvimos e nem imaginamos...

"Centro de dia"...

Uma segunda-feira sem nada que fazer é pouco comum. Confesso que não consigo ocupar tempos livres sem trabalhar ou ter que realizar algo devidamente programado. O dia estava bonito e fiz companhia à minha mulher. Tomar um café sabe sempre bem. Entrámos no centro comercial. É raro ir a grandes superfícies. Entrei e dei conta de que uma livraria tinha desaparecido, a Bertrand. Recordo que sempre existiu naquele espaço. Comprei tantos livros, vi tantas obras e folheava com volúpia aquelas que mais me seduziam. Estar entre livros é como estar no meio de uma floresta encantada onde se consegue ver, ouvir, cheirar e respirar a essência do mundo e compreender a razão de ser da vida. Um livro transforma qualquer pessoa, desde que se lhe toca até viajar na recordação que só o tempo sabe transformar e esculpir com novas formas. – Desapareceu a livraria! Mau sinal. Sinal de crise. Sinal de falta de dinheiro. Ninguém quer adquirir a beleza criativa do mundo. Afinal, isto está mesmo muito mau. Qua

O desconhecido

Domingo de manhã. O ritual alterou-se um pouco. A responsabilidade obrigou-me a fazer um trabalho suplementar. Começo a ficar mandrião. Deve ser da idade e à falta de entusiasmo nas iniciativas paras as quais sou convidado. Eu, que não adiava nada, fazia tudo com tempo suficiente para que as aranhas pudessem construir as suas belas e geométricas   malhas, agora só deixo apenas uma fazer a rede. Consegui, contra todas as expectativas, escrever tudo em duas horas. Afinal de contas a idade também serve para alguma coisa! Ao chegar ao café surpreendeu-me a falta de gente. Não é habitual. Estavam, naturalmente, os crónicos, os “malandros” e os que sempre aspiraram à condição de reformados prematuros. Pouca gente. Ontem, também observei o mesmo fenómeno. Ainda não tinham iniciado as badaladas do meio-dia, quando o sino começou a tocar. Toque triste a anunciar a morte de alguém. Recordei-me que na noite anterior tinha reparado que estava afixado no vidro da porta da velha funerária, no p

Silêncio dos deuses

Imagem
Gosto de passear pelas minhas bandas, porque apesar de conhecer bem a região, acabo por me surpreender com coisas novas, nunca observadas ou não sentidas. Não foi o caso de hoje. Não é que não me tenha apercebido de belezas naturais que nunca vi ou de alguns monumentos mais ou menos discretos que mereciam atenção, mas é preciso abrir os olhos de espírito. Hoje, as portas emperraram e os olhos fecharam. Ainda fiz alguns esforços. Relembrei personalidades e histórias ocorridas naqueles espaços. Senti que poderia criar algo novo, simples e suficientemente belo para recordar. Nem sempre consigo. Fico com pena de ter perdido o suave e colorido veludo produzido pelo sol no silêncio abandonado de uma natureza delicada e amorosa que se entristeceu um pouco por não lhe ter dado mais atenção e rezado a sua oração. Perdi muitas oportunidades, mas mesmo assim, num breve piscar de olhos, ao passar por uma povoação sem gente, triste e abandonada, vi dois arbustos que abraçavam as colunas do te

Sociedade cadavérica

Todos os dias vivo uma ou mais histórias. Gosto de as registar. Gravo-as na memória e, sobretudo, no coração. Ajudam-me a compreender o mundo e a suavizar a vida. Partilho o meu sentir com os anseios de outros numa perfeita e anónima harmonia. A senhora entrou com um semblante nervoso, quase que diria desesperada. Sorri. Não disse nada. Esperei que me contasse o que a atormentava. Trabalha numa instituição que presta cuidados a idosos e doentes. Possui uma longa experiência nesta área. - Oh senhor doutor, peço-lhe desculpa, mas estou muito nervosa com o que me aconteceu hoje. Nunca vi nada semelhante. - Mas o que é que aconteceu? Perguntei. - Antes de vir para aqui, tivemos, eu e uma colega, de ir cuidar de uma utente, como habitualmente fazemos. Levar a comida, lavá-la, cuidar como é nosso dever. O senhor sabe muito bem o que fazemos. Um senhor, que vive num apartamento do prédio, no de cima, veio bater à porta, pedindo para irmos ver a mulher que estava a morrer. Como deve ver que

"Delito de opinião"

Não me lembrava deste texto. Foi publicado em 11.05.11. Uma capicua. Acabou por ser publicado em "Delito de Opinião". Intitulei-o, "Esperança". "Esperança Gosto de ensinar porque aprendo. Aprender é o meu modo de estar na vida. Refugio-me no conhecimento, na reflexão e tento interpretar o que me cerca, procurando muitas coisas, coisas que nem eu sei o que são, só sei que existem. De quando em vez tropeço nalgumas, que, gentilmente, me abraçam para logo de seguida fugirem rindo-se da minha ingenuidade. Olho e sinto que fico mais rico e mais pobre. Rico de conhecimento e pobre de esperança. Uma estranha associação, quando aumenta um diminui a outra. Mais vale o contrário, ser-se rico de esperança e pobre de conhecimento, a recordar a expressão bíblica “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu”. Mas eu não quero ir para o céu, porque não consigo imaginá-lo, e para que serve uma coisa que não se consegue imaginar? Para nada. Aprendi que

Mar amado

Imagem
O mundo sombreado De um mar amado. Lado a lado,  Cheio de passado.

Montanha

Imagem
Lembrança de um dia de outono. Recordação triste. Pensamento de gelo. O sol fez o resto. Pintou com cores belas a minha alma. Levantei-me cedo no meio de sussurros vindos de todos os lados da montanha. O ar muito fresco empurrou-me para um pequeno passeio. Era cedo. Desci acompanhado da brisa que cantarolava de felicidade. Vi as encostas atapetadas de dourado, enquanto belas e avermelhadas folhas se despegavam sem pena do seu mundo. Morte feliz. As cores vivas surgiam de todos os lados, azuis, verdes, vermelhos, amarelos, dourados, brancos, cinzentos, numa estranha amálgama; o ideal para afogar a solidão. Nessa manhã, um velho amigo transformou-se numa daquelas belas folhas secas e acastanhadas, com laivos de dourado, que caíam suavemente como se fossem dançarinas a fugir cheias de alegria para o seu novo mundo. A brisa fresca estimulava cada vez mais a imaginação. A par da vida que se esfumava, recordei momentos deliciosos, cheios de silêncio humano, onde apenas o cantar do vento

O morro

A fotografia apareceu sem dar conta. Um morro suave, uma árvore cheia de fé e uma capela a olhar para o velho caminho orlado de ervas secas e douradas, pintavam um belo quadro numa tarde perdida do tempo. A pequena capela, ao refugiar-se em silêncio sob a sombra da única árvore, dominava o espaço sagrado com a humildade moldada ao longo dos séculos.  Nasci e vivi perto do morro. No, então, denominado "cimo de vila". Comecei a ouvir falar do santo desde muito pequeno. Diziam-me para não ir para o morro, porque do outro lado a encosta era quase a pique e cheia de pedras. Fingia que ouvia, mas sempre que podia fugia até àquele local. O que mais me impressionava era a capela, pequena demais para um santo que também tinha de ser minúsculo. Dava uma ou duas voltas e depois aproximava-me da outra encosta para ver se conseguia apanhar uma boa mimosa de base curva a imitar um "stick" de hóquei. Na altura gostava de jogar ao hóquei, neste caso, versão hóquei em campo, com

Lágrimas de sino

Não ouço o sino. Falta pouco.  Por onde passo registo os sons dos sinos. Gosto de os ouvir, desde o dar as horas, as meias, os quartos, até aos mais tristes ou alegres repiques. Cada um tem a sua própria assinatura. Escrevem de maneira diferente o que lhes vai na alma de bronze. Os seus sons surgem por vezes com voz rouca, dura, seca, cristalina, alegre ou fina. Gosto de os ouvir, mas também gosto de os sentir. Atrás do som vem a vibração como se fosse uma mão capaz de acariciar ou acalmar o que vai no coração.  Gosto de ouvir sinos.  Quando ouço pela primeira vez um novo sino desligo-me de tudo. Fico desperto. Saboreio a sua voz e imagino o que ele já viu, cantou, escondeu, alertou, chorou e alegrou. Sinto as suas emoções, que correm atrás dos sons. Quero guardá-las, mas não consigo, esfumam-se como a neblina da manhã ao nascer do majestoso e ardente sol.  Toques diversos, rápidos, lentos, alegres, tristes, formais ou informais, os sons dos sinos conseguem produzir as mais be

"Fonte dos cães"

Imagem
Uma preciosidade perdida no meio do nada....

Procurar

Imagem
Nossa Senhora do Pranto Procurar é uma forma de estar e de acalmar a vida. Quando descubro o que não espero sinto uma varredura fresca na minha cabeça. Uma sensação única que ajuda a compreender e a ver outros mundos que baloiçam em círculos loucos e quase invisíveis. Nesta altura do ano somam-se as romarias e festividades religiosas. No círculo onde cresci, julgo não haver nenhuma que me tenha escapado. Nem podia. A vida fazia-se em função das festividades religiosas. Um bom pretexto para o importante acessório, a festa pagã, mais interessante, ruidosa, cheia de alegria, de comida, de bebida e de música popular. Ia-se à procissão ou à missa, mas o que interessava era o que vinha a seguir. Um pequeno sacrifício silencioso que antecedia a desejada algazarra dos romeiros esfomeados e sedentos de vinho. Havia as bancas onde se vendia de tudo. Na mais perfeita desorganização misturavam-se tendeiros e taberneiros, cujas carroças, cheias de pipos de vinho e de comida, atraíam com ma

Cidadania

Saber que podemos contribuir para o crescimento e modernidade de uma instituição provoca sensação de bem-estar. O mundo gira em redor de muitas coisas que passam despercebidas. Admiro gente desconhecida desejosa de vencer as dificuldades da vida. É curioso verificar que é assim que o mundo evolui; pessoas que labutam sem serem conhecidas, admiradas ou apreciadas. O somatório dos seus contributos é extraordinário e recompensa as amarguras que nos atolam constantemente. A soberba dos protagonistas que se arvoram como sendo os cérebros e decisores da vida pública faz-me rir. Convencem-se de que são os verdadeiros responsáveis pelo desenvolvimento. Não são. Frequentemente não passam de meros pretensiosos com vontade de serem reconhecidos e admirados. A cidadania anónima é a mais poderosa força para desenvolver qualquer área de atividade humana. A noite convida a adormecer na tranquilidade do dever cumprido, semeado em terras férteis da compreensão e da colaboração, a todos os que dão o

Gesto de atenção

Gosto de uma atenção, de um sorriso, de um olhar tranquilo, de um gesto de nobreza, de um som doce, de qualquer coisa pequena, suave, delicada e que encha o coração. Mesmo sem grandes falas, uma pequena atenção traduz o respeito e afeição de quem sabe exprimir o que lhe vai no coração. Dói-me e exaspera-me a raiva, mesmo a minha quando é despertada pela violência arrogante de quem não vê o que é óbvio, e que constitui a regra mais básica da gentileza humana, o pequeno gesto de atenção. Afinal, também sou sujeito a reações exasperantes que se estendem não só ao fenómeno de ocasião, mas a todos que gritam arrogantemente que só eles têm razão. O que fazer então? Calar-me. Não me mexer. Não sair do lugar. Não ver. Não ouvir. Apenas desejar sentir o que seria da vida se a gentileza de um sorriso ou de um mero gestão de atenção voasse na minha direção. Não voa? Não. Fecho os olhos e deixo-me ir nas ondas virtuais da minha ilusão.

Folha

A folha resiste. Quer manter-se vazia, branca, sem letras, sem palavras, sem pensamentos, sem recriminações, sem soluços e sem esperança. O vazio atrai o vazio e o branco da folha começa a cantar sozinho. Um suave aroma desconhecido invade os meus sentidos escondendo o meu destino.

Livre

Imagem
Não ri, não chora, não se importa com o ontem e nem se preocupa com o amanhã. Livre.

Ser

Não necessito de atenções e honrarias. Passo bem sem elas. Também servem para muito pouco. Sou esquecido a todo o momento. É a ordem natural da vida. Fico apenas com um travo amargo na boca. Prefiro isso a perder a alma, que também não serve para grande coisa, mas sempre conforta e transmite a imagem de que sim, que é melhor ser assim, até o tempo a desfazer em farrapos do esquecimento. Prefiro sentir o odor da brisa que esvoaça à minha frente e desfrutar a leveza de ser um ser que nunca desejou ser. É melhor assim. Prefiro ver as nuvens a correr sem fim.

São Mateus

Entrou com um sorriso estampado na cara, balançando o corpo pesado mas ágil. Voz timbrada pelo trabalho duro. Umas boas-tardes sonoras, enrouquecida pela exposição permanente ao ar, foi um bom preludio para a poder provocá-la, certo de que iria desfrutar bons momentos de conversa. Está mau tempo! Pois está. Venho toda molhada, mas que fazer? "Não peças a morte a Deus nem chuva pelo São Mateus" Como?! Interroguei-a de pronto. Repetiu o provérbio, mostrando a tal sabedoria popular que tanto aprecio. Sorri e vi que a minha percepção estava a bater certo. Gostou do provérbio, senhor doutor? Gostei, claro. Afinal estamos perto de comemorar o São Mateus. Sei que é por estes dias, mas já não sei qual a data. Vinte e um de setembro. Pois. Tem razão. Coincide com o equinócio do Outono. Equi? O que é que disse? Equinócio. Depois dei algumas explicações sobre o tema e recordei que nesta altura é muito comum aparecer as chuvas. Recordei a Santa Eufémia, comemorada a dezasseis de

"Desconhecido"

Imagem
Não quis adquiri-lo há alguns meses. Não sei qual foi a razão, talvez por não querer sofrer mais uma deceção, porque há sempre alguém que se antecipa ou pague um valor difícil de igualar. Confesso que na primeira que o vi seduziu-me a expressão. Um quadro impressionista da primeira metade do século passado. Nunca foi assinado. Também não é a assinatura que me preocupa. A face do homem desconhecido, desenhado por um desconhecido, num local desconhecido, é mais do que suficiente para me atrair. Mas há mais, o rosto desenha um estado de espírito em que se misturam a tranquilidade, a tristeza, a deceção da vida, a honestidade, o canto do sentir de uma alma ofendida, a vontade de perdoar e o desejo do esquecimento que o porvir lhe irá oferecer. O tempo para conhecer a eternidade já deve ter chegado, e há muito. Depois desapareceu, mas há dias voltou a aparecer. Deve ter sido visto por milhares de pessoas. Voltei a vê-lo, e quis, novamente, adquiri-lo. Achei estranho esta coincidência e

Abriram-se as portas!

Há dezenas de anos que passo por aquela localidade. Nunca vi a porta da capela aberta. Tive sempre curiosidade em ver o seu interior. Quando dizia isso, tinha como resposta: - São todas iguais. - Não são nada, são sempre diferentes. Recebia como resposta um sorriso silencioso. Ao ir sem destino vi que a porta estava aberta. Havia uma azáfama dos diabos. Parei. Entrei no templo, onde se encontravam várias mulheres, novas e menos novas, a dar uma esfrega das antigas. Tudo virado ao contrário. Com calma perguntei se podia dar uma vista de olhos. Pararam, olharam-me com curiosidade, e depois, silenciosamente, demonstrando alguma tolerância, deixaram-me observar as imagens e os altares. Reconheci a Santa Eufémia, que estava fora do seu altar lateral por causa das limpezas. A outra santa, ao lado, bela e bem esculpida, atraiu a minha atenção. Não reconhecendo as suas atribuições, perguntei a uma das senhoras: - Está a trabalhar à maneira. É para a festa? - É sim senhor. Tem de ficar hoje t

O cachimbo

Conversas de uma manhã de lazer.  Conversas voláteis como o fumo que sai do cachimbo do reformado. Não servem para grande coisa, a não ser para poluir o ambiente. Discute-se o estado do país e as perspetivas do futuro, como se houvesse futuro para a maior parte das pessoas. O futuro depende de vários fatores, trabalho, dedicação e honestidade. Trabalhar dói. Há quem não goste. Olho em redor e vejo muitas pessoas que pouco ou nada fizeram a não ser terem passado parte da vida à espera da tão desejada reforma. Coitados, conseguem iludir-se de que fizeram algo pela sociedade. Alcançaram o seu desiderato. Um deles espraia-se na esplanada, vomitando, indolentemente, fumo aromático e comentando o estado da nação propondo soluções. Não sei se sabe o que é trabalhar; há muito que está inativo, antes da menopausa caso fosse mulher. Até a isso foi poupado; poderia dar-lhe muito trabalho. Olho e ouço as tiradas habituais, tão ou mais poluidoras que o fumo aromático que inunda o espaço em redor. U

Ventre de uma mãe que ainda não nasceu...

Os dias enchem-se de tragédias e de crises qual delas a pior. O mundo continua na sua agitação delirante, enlouquecido por comportamentos e ambições desvairadas. Continua tudo na mesma; refugiados de guerra, refugiados da fome e da miséria, desgraçados que olham para o céu e não veem anjos nem Deus, tragédias atrás de tragédias, vigaristas a engordarem como porcos, políticos sem honra a prometerem coisas que não passa pela cabeça do diabo e que vão de encontro às mesmas ambições de parte da população, que não difere muito dos que querem governar, ou seja, também querem governar-se à maneira. Sobreviver é isso mesmo, mesmo que consigam deitar uma lágrima de tristeza pelos que vagueiam fugindo dos mais tremendos destinos. Ouço as notícias, ouço os debates, ouço os comentários, ouço os profetas e vejo o que está por detrás, o mesmo de sempre, safar-se, custe o que custar, e teatralizar sentimentos pelos que sofrem ainda mais e não têm qualquer expectativa nos seus países de origem, onde o

Aves sem destino

Vejo, sobre a água tranquila e enfeitada de alegria, algumas aves a voar sem destino, sem saber de onde partiram e sem conhecer o que significa a palavra amanhã. São livres, não têm nomes, não sofrem inquietações, não precisam de saborear esperanças, não sabem o que são tristezas, apenas ondulam no ar olhando para as suas sombras que escorrem voluptuosamente sobre as águas vindas do mar. Uma forma de ser diferente da minha; invejo-as no que toca à alegria, ao esquecimento do seu passado e ao desconhecimento do seu destino onde não existe a palavra futuro. Andam. Vivem. Ondulam ao sabor do vento. Não rezam, não choram, apenas sabem desfrutar a liberdade e o encanto de viver sem ter nome, sem ter nada, a não ser a sua nudez. Livres. Livres de tudo e de todos, até de Deus. Que inveja. Gostava de ter tamanhas prerrogativas. Ser-se humano serve para pouca coisa, ou mesmo para nada, a não ser para compreender e invejar os que aves não sabem que têm. São livres, verdadeiramente livres, porqu

Escrever

Não é difícil de entender que há quem não goste de outrem, mesmo que o não conheça ou tenha ouvido a sua voz. Basta ler o que escreve. Ler o que se escreve permite ver como é que os outros pensam, criam, amam ou odeiam. Não gostar de alguém é algo muito comum, banal, por vezes eivado de um sentimento mortal, não no plano físico, mas no intelectual. Há quem goste de pensar, de imaginar, de criar, de sonhar, de fazer poesia, de contar histórias do dia-a-dia, enfim, há mil e uma maneiras de falar para os outros e até para o mundo sem se mostrar, apenas através do doce, alegre ou triste cantar ao longo das frases e das lágrimas ou sorrisos das palavras. O que se escreve é diferente do que se diz. É muito mais forte, mais profundo, mais real, mais sincero, fazendo-nos aproximar do espírito do criador. Há quem consiga dar magia às palavras, há quem se deixe guiar por elas, há os que as confundem com o brilho, a doçura, o amor, a dor e a raiva desenhadas em papel branco ou em ecrã brilhante

Azáfama

A azáfama de um dia de trabalho desperta sentimentos e permite fruir alguns acontecimentos. As pessoas giram em volta de si mesmas, compram, entram e saem das lojas, correm esbaforidas, enquanto outras andam mais lentamente como se não tivessem de pagar qualquer tributo ao tempo. Caras levantadas, limpas, deslavadas, pintadas, caminham sem pensar.  Outras transportam nos seus rostos os tormentos do corpo, a ansiedade da alma, ou as duas. Tudo gira, mesmo os que param junto das montras ou os que acabam por sentar-se numa esplanada, lutando ou amando com irrequietas línguas que se afligem sempre que têm de respirar o branco sujo do fumo dos cigarros. Conversas desgarradas, muitas sem sentido, outras esvaziadas de conteúdo ou cheias de coisas inúteis, que são as melhores para ocupar a ociosidade do meio da tarde. Acumulam-se sons e passos dos transeuntes aos ruídos urbanos, incómodos, despropositados, capazes de irritar os mais sensíveis. A vida anda pela cidade, não sei se anda perdida

Sol e noite

Sinto uma espécie de vazio desejoso de beber alguma fantasia. O mundo oscila em redor de uma estrela que aquece e ilumina apenas quem lhe apetece. Atributos ou prerrogativas de quem tem força e gosta de dominar os mais pobres e indiferentes ao seu poder e encantamento. Um astro que já foi rei, deus, e que agora nega calor e paz aos viajantes do sofrimento. O esquecimento é o alvo dos seus raios que até parecem ser sedosos e prazenteiros. Nasce e percorre o firmamento com arrogância, destilando desprezo e cativando os mais incautos. O sol julga que, por ser o maior dos astros, capaz de iluminar e aquecer tudo o que estiver ao seu alcance, tem de ser adorado por todos. O melhor é fingir que sim. É rei, é senhor, é deus, é uma estrela que alimenta com a energia vertida pelo seu poderoso ventre os que procuram, na sua ausência, a tranquila e suave noite, esperança e explicação para o mais estranho e inusitado fenómeno, a vida. Também tu, sol, hás de morrer um dia e nin

A imagem

Andei sem sombra sob o céu da dúvida. Céu quente como a fornalha de Pêro Botelho. Andei sem parar à procura de uma sombra, a sombra do silêncio no meio do esquecimento da vida. Andei com o coração aberto, desejoso de encontrar sopros inocentes vindos de almas no meio de matas esquecidas e perdidas, onde se respira o ar desconhecido que conforta quem quer viver sem ser visto. Não ser visto, não ser conhecido, não ser invejado é a melhora forma de apreciar a essência do ser. Algo transitório que merece ser saboreado como sendo o mais novo e flagrante aroma da existência. Foi o que fiz. O calor ameaçador de uma trovoada frustrada impediu-me de ver algo que começa a ser comum nos nossos meios, feiras modernas, todas com o mesmo figurino. Saí, ou melhor, fugi, e galguei o monte sagrado à procura da ermida que conheço desde há muito. Subi e não me cruzei com ninguém. Nem uma viatura, nem uma pessoa, apenas o doce sussurro de almas desconhecidas que agradeciam o meu propósito.  - O que é qu

Noite de sábado

Noite de sábado. Tanta coisa por fazer, mas a inércia da vida leva-me a esquecer os deveres, obrigando-me a pensar. Os rasgos do pensamento começam a desenhar-se no silêncio de uma noite que acabará por ser esquecida. As ideias amontoam-se, não querem respeitar a ordem de chegada, atropelam-se como na fila de qualquer repartição pública, onde o desejo de expulsar e de resolver o assunto é a única forma de apaziguamento. Também as almas, atormentadas por tantos acontecimentos e desvarios sem sentido, procuram gritar e desabafar para poderem encontrar a paz da vida, como se tivesse alguma importância ou sentido. Não tem. É apenas uma forma de justificar o dia-a-dia. Não sei a quem devo dar prioridade. Olho para cima e vejo a beleza de uma escultura, doce, elegante, branca, cheia de sentido a querer oferecer-me algo. Olho-a e lembro quando a adquiri. O sorriso do menino aliado ao orgulho suave da mãe transborda de alegria e irradia raios de fantasia. Tão frágil e ao mesmo tempo elegante.