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A mostrar mensagens de maio, 2012

Viés de confirmação

Costumo dar uma aula sobre vieses e variáveis de confundimento a fim de explicar quais as consequências em termos de qualidade de informação que se obtém no decurso de uma investigação. Se não forem controlados corremos o risco de obter informação de má qualidade, falsa, incorreta ou distorcida, o suficiente para comprometer a nossa visão da realidade e levar a que tenhamos comportamentos errados. O ser humano adquiriu há muito a capacidade de argumentar, uma característica que o ajudou muito na evolução. Essa capacidade de argumentar não é propriamente sinónimo da procura da verdade mas sim o meio mais eficaz de persuadir os outros convencendo-os de que tem razão, mesmo que não a tenha e, deste modo, adquirir as respetivas vantagens. Talvez seja por isso que procura sempre os factos, as opiniões e tudo o que venha a reforçar os seus "preconceitos", ideias, tiques doutrinários, estereótipos religiosos e tudo o demais com o qual se identifica. Chamam a isto o "viés de con

Três mulheres

Não deixo de me surpreender durante as minhas consultas, umas vezes pela positiva, outras pela negativa e, por vezes, pelas lições de vida que recebo. Na mesma tarde, e de forma sequencial, três mulheres ensinaram-me imenso. Trabalhavam todas nas limpezas e já não eram nada novas, mas necessitam de trabalhar para ganhar o pão. A primeira contou-me que tinha tido uma empresa de pintura de cerâmica onde chegaram a trabalhar onze pessoas. Teve que as despedir e foi obrigada a arranjar um emprego. Via-se que a senhora tinha alguns tiques de ter vivido bem. Olhei para o seu pescoço e despertou-me a atenção uma extraordinária medalha em ouro finamente trabalhada representando a Cruz de David e no reverso um menorá. Ao redor frases em português. Perguntei-lhe se era judia. Riu-se, meia. Meia? Explique-me melhor. Afinal era cristã, embora com ascendência judaica. Mas o raio da medalha perturbava-me pela qualidade. Não é muito vulgar tal artefacto em ouro. Explicou-me qu

"Que se lixem"!

De manh ã aparece na TV uma menina a falar de bolsa. Uma jovem que metralha n ú meros, tend ê ncias, diminui çã o do "PSI qualquer coisa", fala das a çõ es que sobem e sobretudo das que descem, porque a tend ê ncia é para diminuir quer c á quer noutros s í tios. Irrita-me muito aquele paleio e finjo que n ã o ou ç o. Ao longo do dia, atrav é s do r á dio do carro, surgem as not í cias irritantes da bolsa de Lisboa. Assim que o locutor liga, penso que é para a Reuters, aparece uma menina, é sempre uma menina de voz fresca que me obriga a imaginar quais dever ã o ser as suas caracter í sticas, que, invariavelmente, diz que est á no negativo, a descer, outras vezes a subir, mas as d é cimas de aumento s ã o t ã o pat é ticas que o melhor seria estar calada. Apesar de n ã o ser especialista nestas á reas, nem para l á caminhar, sei o suficiente de que uma diminui çã o das a çõ es cotadas em bolsa é negativo, traduz problemas da economia e, naturalmente, reflete a

"Alfarroba"

Peregrinar com destino à capital transformou-se numa rotina quase religiosa. Converge tudo para Lisboa. A cidade gosta de se impor ao resto do país, não é por acaso que desdenha dos seus domínios chamando-lhe "província", criando um afastamento de forma a realçar a sua pretensa aristocracia, o que me diverte imenso. Tive de participar numa reunião sem grande importância, que poderia realizar-se sem a minha presença, já que faz parte daquelas em que uma pessoa "tem" de entrar mudo e sair calado, mas as obrigações formais exigem que se cumpra o ritual. E eu cumpri. Restou-me algum tempo livre que aproveitei para ir até ao Chiado, onde tomei um café, onde me misturei com uma massa de gente anónima, mas conhecida de outros momentos, onde saboreei os fumos de castanhas a assar, fumos impedidos de dispersar pelo nevoeiro que se fazia sentir, onde vi alguns comportamentos sui generis, a conferir alguma luminosidade àquele espaço, onde me confrontei com algumas transformaçõ

Terra quente...

Nasceu da terra, num dia quente de ver ã o. Criado na abund â ncia da mis é ria rural, cedo soube o que era a fome e tamb é m donde v ê m os alimentos. Gostava de esgaravatar a poeira de que tudo é feito, jogando-se no meio das ervas, desviando frisos de á gua empastada de terra, fazendo lama fresca, com a qual constru í a muros, casas e castelos e figurinhas filhas de uma imagina çã o rica e esperan ç osa. Aprendeu a adorar a deusa da fertilidade e a conhecer o movimento das sementeiras e das colheitas, como se fossem espelhos do que existia nos c é us. Ensinaram-lhe a ter esperan ç a e respeito pelos seus semelhantes. Acreditou que um dia tudo se transformaria; a fome desapareceria e a alegria do bem-estar surgiria numa fresca manh ã de S ã o Jo ã o, é poca em que n ã o se sente tanto a for ç a do desespero do est ô mago. Acreditou nisto tudo e em muito mais. Mas n ã o, afinal, continuava tudo na mesma, havendo mesmo alturas em que a natureza, a serva de Deus, e a outra, a

Anónimo

Cada vez mais me convenço de que a melhor forma de viver é passar despercebido, comentar anonimamente ou não ter qualquer relevância pública. Ser uma merda entre os demais deverá ser a regra número um para garantir às nossas existências o máximo conforto. Presumo que esta regra é crucial, determinante mesmo, para se chegar a algum lado sem sobressaltos de maior ou, então, sempre evita que sejamos vítimas de mal entendidos. Ler um texto de um autor anónimo é completamente diferente de um conhecido. Se for anónimo, ou desconhecido, o resultado é um, mas se o leitor conhece o autor, então, as coisas mudam de figura. Lá diz o ditado que "santos ao pé da porta não fazem milagres". Claro que não, e os outros idem aspas aspas, mas como ninguém os conhece ainda lhes é dado o benefício da dúvida de que são os melhores, até mesmo santos, fazendo-se, muitas vezes, de santinhos, para convencer o próximo. Gaita. Começo a estar farto de tanta prosápia, de incompetência, de arrogância, de

"Nesta igreja estâ a milagroza imagē"

Consegui acabar as consultas a tempo na parte da manhã. Desloquei-me até Pombal, onde almocei. Pedi grelhado misto à senhora, o habitual para quem se comporta como um animal que tem fome e que não está para experiências, gastando o pouco tempo do meio do dia. Enganou-se, trouxe-me entrecosto. Não disse nada, até agradeci porque foi super rápida o que me permitiria descansar um pouco e beber um segundo café, coisa que só faço aqui. Passei o rio, desloquei-me à esplanada e fiquei aborrecido. Não tinham posto as mesas e as cadeiras. Recusei ir para o interior do café. Com um dia destes seria uma heresia. Que fazer, então. Muito simples. Entrei na igreja da Nossa Senhora do Cardal, onde se encontra a "milagroza imagē", e aí permaneci até retomar o trabalho. É um local encantador, fresco, suave, elegante, excelentemente bem cuidado e vazio como é recomendável para uma pessoa como eu. Olho para as paredes e vejo nichos, santos e o local onde o Marquês descansou durante alguns anos

Rosa vermelha

Manhã quente, demasiado para o meu gosto. Disse a frase costumeira, já venho, vou tomar um café. Ninguém respondeu, não havia necessidade, os trabalhadores ainda não tinham concluído o ritual dos exames habituais, é o que faz ter a mania de chegar "antes do tempo". Não me importo, porque confere-me o direito a saborear a minha bebida preferida, respirar o ar matinal, olhar para as faces recém despertas, umas imbuídas de alegria, outras de tristeza e algumas atormentadas pela angústia, enfim, almas ainda meio despidas pela noite, almas a transbordar sinceridade, porque é a esta hora que as suas janelas se entreabrem, permitindo ver o seu interior. Não se apercebem. Sorrio. É bonito de se ver. Cruzei-me com algumas, muito poucas. Enquanto me dirigia até ao café, lembrei-me de uma consulta do dia anterior em que observei uma jovem, que, na madrugada da serenata, foi atropelada, tendo os autores fugido sem prestar os cuidados necessários. A sorte esteve do seu lado. Apesar de ter

Prémios Darwin

Em tempos adquiri um livro com um título interessante: “ Prémios Darwin”. Mas, o subtítulo era ainda mais curioso: “ Prémios à estupidez humana”. Trata-se de uma coletânea de histórias cujos protagonistas acabam por sucumbir devido a erros e comportamentos lamentáveis. Wendy Northcutt explica o sentido dos Prémios Darwin (também há menções honrosas!) numa base evolucionista. Deste modo, segundo a autora, os “ Prémios Darwin homenageiam aqueles que asseguram a sobrevivência a longo prazo da nossa espécie, retirando-se eles próprios, de uma forma totalmente idiota, do fundo genético da nossa espécie. Contribuem, assim, para o aperfeiçoamento da espécie humana. Histórias mirabolantes que vão desde o larápio que tenta roubar os fios elétricos sem desligar a corrente passando pelo homem que acende o isqueiro para espreitar dentro de um recipiente com gasolina, ou do terrorista distraído que abre a carta armadilhada que lhe foi devolvida por insuficiência de selos, ou ainda de um outr

“Time me, gentlemen, time me”

O erro médico, a negligência e as respetivas responsabilidades são alvos de preocupação e de reflexão, quer por parte dos médicos quer por parte dos juristas e legisladores. O amplo leque das causas e fatores subjacentes ao seu aparecimento começa a ser melhor caracterizado . A história da medicina está repleta de inúmeros casos paradigmáticos de erros resultantes de vários fatores . No século XIX, um notável e distinto cirurgião escocês, Robert Liston, caracterizou-se pela rapidez e eficiência das suas práticas cirúrgicas, nomeadamente amputações dos membros. Na altura, não havia ainda antissepsia , nem anestesia, pelo que a rapidez da intervenção cirúrgica era crucial para o doente. Tornou-se no cirurgião mais rápido do mundo ao executar amputações em dois minutos e meio (recorde: dois minutos e vinte e oito segundos). Era muito vaidoso. De tal forma, que solicitava à assistência, muitos dos quais eram estudantes, que o cronometrassem: “time me, gentlemen, time me”! Claro que a

"Botar faladura"

A primeira vez que falei em público foi há muitos anos, ainda era estudante. O meu professor, responsável pela iniciação à vida académica, obrigou-me a preparar uma conferência. Levei a incumbência de tal modo a sério a ponto de ter passado semanas a estudar, a compilar e a sintetizar tudo o que na altura poderia obter sobre o assunto. Foi após a revolução de abril, na Figueira da Foz. Enquanto os meus amigos e colegas andavam entretidos com a revolução, eu tinha que estudar para não fazer má figura. No dia da comunicação estava aterrorizado. Sala cheia. Depois, à medida que ia falando, acalmei, só voltando a ficar nervoso no momento do debate. Fizeram-me algumas perguntas, sobretudo um cavalheiro antipático, barbudo, de voz forte, agressivo e arrogante. Fiquei irritado com aquela atitude e recordo-me de ter respondido à maneira, de forma direta, objetiva e muito seca, tão seca que até fiquei sem saliva. Quando cheguei a Coimbra, a meio da tarde, caí na cama e dormi profundamente. Sent

"Dogmatismo" político

Enfim, é altura de fazer um pequeno desabafo. Não é que vá mudar o que quer que seja, mas sempre é uma opinião e não há nada melhor para o fígado do que libertar a bílis em excesso. Acompanho os jornais, amparo-me nalguns programas televisivos, leio blogs, poucos, mas, através do facebook, sou capaz de analisar o comportamento de muitas pessoas, as quais são verdadeiros fanáticos, preconceituosos, doentes, conseguindo fazer inveja aos proselitistas religiosos ou aos mafiosos absurdos do futebol e que ombreiam com "notáveis" comentadores políticos da nossa praça. Ponho-me a pensar se não existirá uma estreita relação entre os religiosos, os adeptos enraivecidos de qualquer equipa de futebol, de qualquer não, de duas ou três, porque as outras não passam de adornos, e alguns cidadãos com "veia" para a política. Parece que sim. Os fiéis da religião aceitam-na de forma incondicional, ajudando-os a passar o tempo, a ultrapassar as tragédias ou aceitar as benesses que lhes

Trapaceiro profissional

Dia da mãe. Para poder chegar a tempo ao hospital, lembrei-me de ir pelo IP3 em vez do habitual trajeto ao longo do Mondego, por Penacova. Uma asneira das grandes, porque me tinha esquecido de que era dia do cortejo da queima das fitas, que o trânsito estava condicionado na zona dos Fornos e que a entrada da cidade está num caos naquele ponto.Tinha outras alternativas, conheço-as como as palmas das minha mãos, mas quando dou para a burrice, é dito e feito, são umas atrás das outras. Queria chegar a horas, não é que tivesse dificuldade em vê-la, dada a minha condição, mas queria fazê-lo acompanhado pelo resto da família. Uma estopada. Depois de assistir às infiltrações na fila do trânsito, tão típica dos portugueses, desrespeitando as normas básicas de civilidade, o que me incomoda sobremaneira, esbarrei nos semáforos da rotunda da casa do sal. Trata-se de um local apetecível para vários tipos de pedintes que, no momento da queda do vermelho, atacam os condutores dos veículos de todas a

Cinzas de esperança

Tinha que acontecer. Acontece sempre. Sinto, desde há muito, que a passagem do tempo se acompanha do encurtamento da tranquilidade, anunciando, fatalmente, a desgraça. Ondas de angústia movem-se a estranhas velocidades, crescentes, desejosas de morrerem na parede do imprevisto. É a única possibilidade de as eliminar. Morre a angústia, nasce a dor mergulhada na incompreensão. Aconteceu. Toca o telefone. O visor diz quem é, e quem é, é sinal de que algo de anormal estará a acontecer. Aconteceu mesmo. Um violento curto-circuito cerebral obrigou-me instantaneamente a levantar a hipótese do diagnóstico mais provável, e, também, o mais grave. Contactos, muitos contactos, todos eles filhos de curtos-circuitos desesperados. Objetivos: confirmar o diagnóstico e estabelecer estratégias imediatas e a curto prazo. Ao final do dia fui buscá-la. Meio-admirada, ou talvez não, deixou-se transportar. Nunca perguntou o que estava a acontecer ou para onde dia. Também seria indiferente. O seu mundo interi