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A mostrar mensagens de julho, 2015

Saborear

Saboreio o dia, antevejo o anoitecer, delicio-me com o cansaço, frutifico o olhar, liberto o pensar e deixo de esperar. Deixo-me ir na tranquilidade de uma brisa sem dono à espera de mergulhar no doce sono. Liberto o pensar mesmo sabendo que não vou ganhar, apenas quero sentir o sabor do calor da saudade do amor. Não quero esperar, apenas desejo voar em palavras e doces frases do sonhar. Lanço o olhar através das janelas sem par e olho para a tranquilidade do ar. Deixo-me vencer pelo cansaço antevendo o merecido descanso.  Saboreio o dia, saboreio o anoitecer, saboreio uma bebida e saboreio o esquecimento do futuro da vida.

Dualidade

O mundo mede-se por pequenas coisas e acontecimentos singulares que, de um modo geral, passam quase despercebidos, embora um ou outro consiga ter mais projeção. Vejo o descontentamento provocado pela morte de um leão, célebre, que arregimentou protestos ao mais alto nível com figuras públicas a insurgirem-se contra tão hediondo ato motivado pela lascívia de um caçador que ainda vai ficar com a cabeça a prémio. De facto, o dentista que o matou deve ser classificado como uma besta. Aceito as medidas (legais) propostas para castigar o seu ato e o que lhe está subjacente. Em contrapartida, um menino palestiniano foi morto por dois israelitas, tendo os restantes familiares, sobretudo a mãe e um irmão, ficado gravemente feridos, os quais, quase com toda a probabilidade, irão morrer dada a extensão e a gravidade das queimaduras. O repúdio subiu à tribuna de algumas pessoas, mas não vi a mesma onda de indignação por parte dos outros, os que repudiaram a morte de Cecil, era assim que se cham

Ria

Aprender é uma constante diária. Aprende-se de várias formas, ensinando, escutando, analisando e observando. Depois, questiono, o que fazer com os conhecimentos? Por vezes é fácil, divertido e muito confortável, mas há alturas em que sinto uma tristeza e um desconforto difícil de entender.  O caráter das pessoas é determinante para que haja uma boa relação. Sem uma adequada relação não é possível construir um bom ambiente de trabalho. Depois é o costume, desorganização, enfado, antipatia e modos estuporados, tudo fruto do mau caráter e de uma rotina sem ordem e mais do que obsoleta. É difícil trabalhar em certos ambientes. Quando a grosseria impera morre a tentação da criatividade e levanta questões quanto ao futuro de uma comunidade. Estranha sina a minha quando sou cercado e envolvido por gente que se projeta em círculos de indiferença, secura de emoções e agressividade boçal ou silenciosa. Ar poluído pela falta de gentileza, quente com a grosseria da ignorância, escuro em abund

Pedras doces e belas...

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Fui cedo. Aproveitei para respirar o ar do final da tarde num dos espaços mais emblemáticos de Coimbra, a praça 8 de maio.  A brisa começou a acelerar e o corpo a arrefecer. Um fenómeno típico que marca a transição entre o dia e a noite que se avizinhava. Sentei-me, bebi um café e deixei a memória percorrer aqueles espaços trazendo à luz do dia, que se apagava lentamente, lembranças de quase meio século. Sobrepunham-se provocando confusão e alguma agitação. Todas queriam a primazia. Não era capaz de me concentrar numa que fosse. Eram tantas que acabaram por provocar a ilusão de que vivia no presente todo o passado. De repente olhei para cima e encontrei a solução. O tempo parou, o passado esfriou, o presente aqueceu e o ar cheio de paz e de tranquilidade coloriu-se de um amarelo avermelhado pintado no templo sedutor e eterno de quem ama a sua cidade. Bastou olhar para cima e desfrutar as mensagens de vida e de história guardadas ao longo dos séculos. Depois foi a noite que aparece

"Espanta-emigrantes"

Há muitos anos, ainda não havia a rede de autoestradas e vias rápidas que temos por aí, era muito perigoso circular neste país, sobretudo nos meses de verão. A invasão dos emigrantes com as suas máquinas constituía um real perigo. Recordo muitos acontecimentos e outros tantos sustos. Talvez o mais assustador tenha sido numa ida até Viseu. Numa curva, perto do Fail, uma "voiture" entrou em alta velocidade e despistou-se. Não levei com ela nas trombas porque consegui fugir para a outra faixa. Felizmente que não vinha ninguém atrás do outro. Um susto de morte. Era muito comum. Às vezes chegava a apanhar susto atrás de susto. Em conversa com um amigo, um viajante que galgava todo o território nacional, contei-lhe as minhas peripécias. Obviamente que em matéria de histórias rodoviárias provocadas pelos emigrantes deveria ter um currículo muito superior ao meu. Ouviu com muita atenção e depois, com um sorriso maroto, disse-me: - Eu não tenho problemas desses. Arranje uma buzina co

Morte e beleza...

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("Tale vivi como ti tal serás como mi" - 1576) Qualquer dia serve para sentir a beleza do mundo que nos rodeia, até no dia da morte. Surgiu a morte. Tinha que aparecer, há muito que prometia suspirar por um dia destes, calmo, cálido e cheio de vida. A morte tem outro significado quando surge discretamente na onda da vida. Aconteceu. Passei algumas vezes naquele local. Rodeei o templo várias vezes; sentia que deveria esconder coisas belas, apetitosas para a alma e analgésicas para a vida.  Hoje, a porta estava aberta. Entrei e aproveitei para poder ver o seu interior e o odor dos tempos passados. Hoje, a porta estava aberta. Foi a morte que a abriu. Olhei para a morte à minha maneira, em silêncio e sem ver a face. Tenho as minhas regras, não ver as faces dos mortos, porque me fazem esquecer as expressões da vida. Prefiro ficar com essas recordações que mergulham na tranquilidade absoluta do tempo quando o pêndulo deixa de oscilar.  Aproveitei o momento para me in

Ilusão...

A vida estremece de amargura a qualquer instante. Delicia-se com a explosão de sofrimento numa faísca de momento. Sabe fazer esperas e apunhala por querer. A vida delicia-se de prazer quando faz sofrer. Se me oferta uma breve sensação de doçura, numa bela manhã de verão, é porque pretende atormentar com mais prazer o meu coração. Depois, depois espera pela melhor ocasião. Consegue rir-se de mim. Consegue entristecer-me a ponto de não compreender a razão de ser da vida. Atormenta-me sempre que pode. Não gosto da vida. Nunca gostei. A vida é a imagem no espelho da mais estranha ilusão. Transforma-se de um momento para outro numa qualquer realidade que sabe deformar os mais belos sentimentos, sugar a essência da paixão, envenenar a fonte da alegria e paralisar a emoção da devoção. Não sou devoto da vida. Não sou devoto de ninguém. Não invejo nada. Só tenho pena de não poder gozar a verdadeira paz de um dia de ilusão. Se ao menos a ilusão existisse ainda poderia acreditar na finalidade da

Sabor a doce...

O sabor doce e quente de uma manhã de sábado desperta algumas emoções suscetíveis de fazer esquecer o resto de uma semana de trabalho e de muitos problemas. É curta, é suave, é prometedora, tem uma ação analgésica e consegue despertar lembranças de um futuro anunciado.  Sabe bem apreciar o sabor doce e quente de uma manhã de sábado, nem que seja por breves momentos, nem que se vista do manto da ilusão. Sabe bem e chega para quem acredita ainda em seres férteis de bem. Um bem escasso que se esgota permanentemente.  Sabe bem.

Arte...

Os dias enchem-se de lembranças sem sentido. Resta a noite para poder despejar os dejetos da vida e respirar o ar puro de desejos perdidos no meio da louca turbamulta. Olho em redor e reparo em pequenos pormenores. Os melhores provém do exercício da arte. Arte da música, do canto, da pintura, da escultura, da escrita, do teatro, do fado e da beleza sem fim, que se esgota em cada segundo que passa mas permanece eternamente na alma.  A arte é a face da verdadeira essência do divino. Encerra sem si o belo, a tranquilidade, a esperança, a justiça e o mais puro dos amores. E há quem ande por aí, nos cantos, nas esplanadas, nos santuários, nas peregrinações e em adorações à procura de fantasiosas explicações. O melhor é mergulhar na arte, seja ela qual for, e morrer afogado na mais pura e perfeita embriaguez.  

Votação

Sinto uma enorme frustração quando vejo alguém a querer impor a sua visão do mundo, sobretudo quando está encoberta por regras e comportamentos de natureza moral. Não é que tenha nada contra a moral, apenas sinto desconforto quando me querem impor a dos "outros". A minha não deve ser das melhores, confesso, mas mesmo assim posso afirmar que faço os possíveis para conciliar a liberdade com os mais básicos e elementares princípios de convivência entre os seres humanos, sejam eles quais forem.  A aprovação pela Assembeia da República de alterações à Lei da interrupção voluntária da gravidez causou-me desconforto. Pagar taxas moderadoras? Não é o que mais me preocupa. O que me incomoda é o "aconselhamento psicológico obrigatório" e a presença da "autoridade moral" representada pelos médicos objetores de consciência. Há qualquer coisa que não está bem. Não sou a favor do aborto, como é óbvio. Opinião partilhada por muita gente, inclusive muitas que são "

Limões...

Convivi sempre com pessoas de idade e aprendi muito com elas. O conceito de que a idade acarreta bom-senso, paz, serenidade e sabedoria é verdadeiro, mas só em parte. Acompanha-a outras facetas, ângulos sombrios e tristes, marcadas pelo arrependimento, subversão, doença, sofrimento e a estranha percepção de que o fim está ao virar da esquina mais próxima. O livro, “A mesa de limão”, de Julian Barnes, escritor britânico, demonstra, através de vários contos as diferentes realidades emergentes no decurso do envelhecimento. A escolha do título, baseou-se na simbologia chinesa, segundo a qual o limão representa a morte. Ao mesmo tempo que lia esta obra, deliciava-me com uma outra, “Gente de palmo e meio” de Augusto Gil. Os contos deste genial autor focam as crianças com as suas aspirações, visões do mundo, virtudes, traquinices, medos, desejos, insegurança, tragédias, alegrias e sempre muita esperança mesmo entre os mais desafortunados; em perfeito contraste com a obra de Barnes. Aug

"Verdade ao anoitecer"...

O peso do dia faz-se sentir ao anoitecer. Por vezes o mundo lembra-se de rolar no lombo. É duro. Durante a manhã o cinzento tomou-me com raiva, com rancor e com desprezo. Apanhou-me. É tão fácil ser-se apanhado, basta estar a pensar no azul do céu escondido e no brilho da névoa de espuma branca onde os anjos se refrescam com algodão de açúcar. Não se dá conta das suas presenças. Apenas se sente o odor a alegria. Gosto do cheiro das almas. O trabalho prolongou-se numa longa rotina, aos soluços, entremeados por algumas conversas ricas, originais e por outras em que o silêncio imperava. As conversas surgem através dos sinais que os olhos esfomeados lançam nos demais. Olhares quentes, sedutores, tranquilos, soltos e verdadeiros. Olhares que anunciam planícies ricas de ideias e prenhes de histórias. Há outros olhares, os que fulminam, os que fazem doer, os que eu não gosto de ver, os que agridem sem falar e os que queimam sem pestanejar. Não quero ouvi-los. Não falam. Também não os enten

"Manhã cinzenta"...

Uma manhã cinzenta em que a opinião se vestiu de inconveniente e enfeitou-se de arrogância e prepotência, talvez para fazer combinação com a sua visão imperativa do mundo e ausência de bom caráter. Incomoda-me certas observações ou comentários quando são lançados gratuitamente no ar através de palavras sobretudo os comentários sem autor. Incomoda-me e entristece-me, porque julgam que têm capacidades para opinar sobre o trabalho dos outros. Fico desfeito. Sinto o meu ser a esfarrapar-se em tiras de tristeza sem limite. Tudo porque a discordância atinge foros de obscenidade. Podia ter ficado calado. Podia ter comentado fria e cinicamente, mas não, libertei a minha alma que disse o que tinha a dizer. Concordo com ela, em absoluto. Libertar os sentimentos despertados por injustiças, que devem esconder insuficiências ou frustrações de longa data, ainda é o melhor. Não é que me alivie muito. Não é que vá mudar o que quer que seja. A natureza humana é violenta e ingrata. Mostra frequentement

"Tela de um dia"...

O dia está prestes a sucumbir à força do ritmo da natureza. Um ritual patético que nem sempre trás algo de novo. Tenho que inventar coisas novas, sedutoras, tristes, esperançosas, loucas, divertidas e até mesmo passear recordações esquecidas ou perdidas. O mundo é uma tela vazia, feia, descorada, sem sentido e sem brilho. Para ter algum significado ou vida é preciso pintá-la, dar-lhe cor e beleza de forma a poder ser pendurada ao lado das longínquas estrelas. Só assim o mundo tem algum sentido. O que vou fazer? Pintar uma tela com letras, frases e pensamentos retirados da minha delicada e sensual paleta de cores.

"Almoço"...

De quando em vez tenho de mudar de rotinas, não porque seja meu desejo, mas porque as circunstâncias assim o impõem. Adapto-me com enorme facilidade e dou azo à imaginação.  O almoço de hoje obrigou-me a deslocar para norte, uma dúzia de quilómetros. Já tinha ido em tempos àquele lugar que me deixou uma boa impressão.  Com era cedo fiz tempo numa esplanada e andei a vadiar pela localidade onde outrora estudei. Mudou muito.  Olhei para a igreja e comentei: - Vê lá tu que conheço tão bem esta terra e nunca entrei na igreja, nem mesmo quando andei por aqui. Sou tão descuidado. Bem, o meu descuido prende-se com o facto de quando passo não tenho tempo ou, então, o templo estar encerrado. Vi a porta entreaberta. Não perdi o momento. Não fui criticado, apenas ouvi mais uma vez a mesma interjeição: - Mais uma! São todas iguais. - Não são nada. São todas diferentes. Entrei e verifiquei que era pequena, uma só nave, com tetos pintados com motivos religiosos muito bonitos. As imagens eram

"Silêncio"...

Pouco há a fazer num sábado à noite no meio de uma povoação em processo de desertificação acelerada. Dar um pequeno passeio, passando pelos mesmos locais, sempre na esperança de encontrar algo diferente ou um sinal a recordar os velhos tempos. Mas nada. Não há pessoas, apenas nos cruzámos com quatro ou cinco. Umas são taciturnas, com caras perdidas, outras são as clássicas, tipo figurantes, que recolhem as suas casas e depois são os fantasmas aos quais se juntam algumas almas que surgem sempre que as recordamos. Para quê? Para justificar uma curta conversa e para lembrar pequenas epopeias de um passado esquecido. Não sei se somos nós que as recordamos ou se são elas que nos chamam e atiçam as nossas memórias. Tanto faz. As recordações servem para isso mesmo, justificar curtos momentos à espera de se libertarem de vez.  Sentado na varanda, a apanhar banhos de brisa fresca, olho para as nuvens que bocejam de indiferença. Não sei se têm frio. Não se mexem, adormecem ao som do estranho

"Máscara de porcelana"...

Uma curta entrevista. A senhora, de chapéu e sentada na praça de toiros, foi interpelada pela jornalista. Estive atento. Falou, comentou, expressou oralmente os seus sentimentos e emoções. Ouvi com atenção. Assustei-me. As suas frases não eram acompanhadas da esperada expressão facial, que documenta, acompanha, reforça e fala de forma particular. Apenas o lábio inferior se mexia. O resto não. Nem as pregas ao redor dos olhos piscavam ou soluçavam. Nada. Apenas a mandíbula descia ou subia, acompanhando as falas. Conseguia transmitir um sorriso sempre igual, uma isolinha a raiar o patético. Acabei por saber que já era avó. Uma avó com cara de porcelana a raiar os trinta e poucos anos. Para que serve uma face destas? Para brincar às bonecas? A senhora irá tombar num envelhecimento aparvalhado oferecido pelo tempo. Envelhecimento enxertado numa artificialidade sem sentido. Onde estão as rugas? Onde está a pele macilenta? Onde está a sombra da vida passada? Onde estão as emoções? Como pode

Cansam...

O sol acaba de aparecer neste instante. Acordou tarde e ainda está sonolento. Tanto faz, não aquece a alma fria, não faz sonhar no novo dia, apenas consigo sentir um estranho lamentar. Não me ouve. Tanto faz. Eu vejo o que anda em meu redor, tanta falta de paz. Horrível. Cansa ler o que a gente humana faz. Desgraças. Olho pela janela e consolo-me com a visão de vinhas vestidas de verde desejosas em libertar os seus frutos e deste modo conseguir dar alguma alegria no momento certo, na véspera do nascer do belo dia. Tarda o seu nascer. Arrasta-se como um fantasma perdido à procura do seu destino. Olho em redor e vejo seres humanos. Estranhos seres. Cansam. Muito. Começo a cansar-me de os ver, de os ouvir e de os sentir. Cansam. Gostava de fugir. Gostava de passear de braço dado com almas sem dor, sem sorriso, sem calor, apenas almas doces, cheias de paz errando pelo universo sem medo, sem esperança, sem sentir, a não ser a paz do não existir. 

Sentado no chão...

Sentado no chão, isolado do mundo e de qualquer inspiração. Deixo-me embalar pelas recordações de outros tempos em que não sabia onde ficava o futuro. Com o tempo encontrei-o. Não o aprecio. Faz-me recordar os velhos momentos em que os pensamentos morriam assim que acabavam de nascer. Não deixavam grandes marcas, apenas algumas cicatrizes que o tempo faria o favor de temperar. Recordo esses momentos atribulados, mas com algum sentido, porque era tão natural como a própria vida. Não tinha termo de comparação, nem sofria da síndrome da ilusão, tudo andava ao sabor do vento e do encanto do momento. Sentado no chão, debulhava o velho termo comendo aquilo que a minha mãe tinha preparado à noite, a refeição do dia seguinte. Sentado no muro, sentado no pinhal, sentado numa pedra ou em qualquer lugar, comia sem saborear o conteúdo. Agora consigo recordar o seu sabor, algo insubstituível, porque tinha o amor da minha mãe. Alimentava o meu corpo e semeava a recordação no futuro. Gostava do s

Do “De Profundis” ao Pinóquio"...

Mais um dia. Não muito diferente de outros. Cheguei a casa e tinha à minha espera a neta mais nova. Vi-a de longe junto da entrada com a porta entreaberta. Uma das minhas três delícias. A mais nova dos três. Acabou o seu primeiro ano de escolaridade. Novinha de mais para a empresa fez o que pode, mas fez, e ainda vai fazer mais. Adoro o seu empenho e forma de lutar. Promete. Depois dos doces e contínuos beijinhos premiei-a com a aquisição de mais dois livrinhos da sua coleção. - Ela já me leu um livro. Sozinha. Ontem até me adormeceu. Disse a mãe. - Ai sim? Então quero ver. Leonor lê uma página ou duas. A menina agarrou num livrinho e pôs-se a ler com fluência intercalada por pausas mais ou menos prolongadas para decifrar o que estava escrito. Mas leu. Ouvi com atenção e com alguma emoção, porque estava a ler para o avô a história do Pinóquio. Uma sensação muito especial invadiu-me no momento ao relembrar o meu primeiro livro. Em tempos, há cerca de meia dúzia de anos, escrevi, nest

Paz...

Por onde quero que vá esbarro invariavelmente com a sua figura. Parece que não há canto, templo, castelo, vila, cidade, rio ou fonte de recordações que não a encontre.  Sinto o bater de um sino muito poderoso a dar as duas da tarde. Hoje, sem querer, mudei de piso. Escolhi outro silêncio. Um outro templo não muito afastado do habitual.  Não sabia que naquele local tinham sido feitas as pazes entre o pai e o filho. A sua intercessão no início de uma batalha fratricida conseguiu evitar o pior. A sua coragem e o seu amor pelo marido, pelo filho e pelo povo foi determinante para a estabilidade e a paz de um Portugal ainda criança. São curiosas as suas imagens e passagens com as quais tropeço frequentemente. Já me sentei em locais onde esteve. Noto que os seus pensamentos vivem sem se importar com o tempo. Alimenta almas e esperanças de quem se vê deserdado pelo mundo das ilusões. É raro o dia, seja qual for a sua medida, que não a encontre. O país está impregnado do seu aroma, da sua

"Muros"...

Lembro-me perfeitamente quando começaram a construir o "muro de Berlim". Ouvia falar da cortina de ferro e a minha imaginação infantil teceu a respetiva imagem, uma cortina gigante que em vez ser de renda, para cobrir a janela, era de ferro. Mas como vão colocar a cortina? Que raio de janela é essa que tem uma cortina desse tipo? Como fechar e como abrir a cortina? Para quê? Não percebia a linguagem dos adultos. Era difícil entendê-los. Quando se começou a falar do muro foi um pouco mais fácil. Muros eram coisas que não faltavam. Tantos muros ao longo dos caminhos, à entrada das quintas, fazendas e até havia na escola onde me sentava e fazia exercícios de equilíbrio com risco de cair de uma altura nada pequena. Estava constantemente a ser advertido para não andar em cima de muros, porque podia tombar. Tinha essa mania. Não era único. Os outros também faziam a mesma coisa. Saltávamos para cima de um, abríamos os braços e caminhávamos em silêncio. Presumo que era a única situa

Aves...

Os domingos de verão servem para passear, voltar a ver o que já se conhece e prever o futuro deste pobre país. O vazio é uma constante. As localidades estão cada vez mais desertas. Não se veem seres humanos, nem cães, nem gatos, apenas pássaros. Nunca vi tantas aves, de todos os tipos. Esvoaçam, cantam e dançam livremente como querendo testemunhar que não precisam de nós. Curiosa esta mudança de paradigma de vida.  Passei por velhos locais. Noto um tremendo esforço para manter viva certas zonas. A tristeza aquecida pelo sol foge da alegria que dormita à sombra de velhas árvores que se esqueceram dos humanos.  O mundo continua a girar, as pessoas a pensar e a decidir nos grandes centros urbanos convencidos de que a natureza as ouve e compreende as suas opiniões e decisões. Pobre gente que se entretém nos jornais, nas televisões e em reuniões como se o mundo fosse delas. Sorrio perante tantos diletantes. Gente pretensiosa que pensa e julga que é séria. Seres incapazes de travar o qu

Perdido...

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Elegância e beleza...

"Néon azul"...

Há muitos anos, ao chegar a Amesterdão, deparo-me na viagem para o hotel com um letreiro de néon azul debaixo de uma janela de um edifício com vários andares: "Deus não existe". Fixei-o durante todo o tempo que levei a passar por aquele local. No meio de tantas luzes, tantos anúncios e tanta confusão, a frase adquiria uma força que se destacava por um belo azul que apagava tudo em redor. Questionei qual teria sido a ideia do autor ao mandar fazer um "anúncio" daqueles na cidade mais estranha que visitei até hoje. Cada maluco com a sua mania. Mas a frase ficou, e continua a martelar os meus pensamentos de quando em vez. Uma frase provocadora para muitos, os que acreditam em Deus, e estimulante para os que não o compreendem e não o aceitam. Seja como for a frase tinha esse condão, provocar, estimular ou recordar.  Ontem, ao ler uma crónica sobre "Deus está morto", o filósofo citou outros, nomeadamente os que a escreveram, inventaram ou a descobriram. Um t

Sábado...

Aguardo que o sábado me traga qualquer coisa que faça despertar o sentido de que vale a pena saborear mais um dia de vida. Nada de espalhafatoso, nada de especial, apenas algo trivial que consiga espantar qualquer mal. Pouco coisa. Contento-me com um acontecimento, uma observação, uma imagem, um odor, uma emoção, um quadro, uma peça de arte esquecida ou perdida pelo mundo de então, pouca coisa ou mesmo coisa nenhuma. Se não me trouxer nada de novo então terei de ser eu a oferecer ao sábado, o dia da nossa criação, uma suave e solitária oração.

"Medo"...

Confesso. Tenho medo. Cada dia que passa sinto uma estranha baforada de medo a causar arrepios ao longo da espinha. Cada vez mais intensa, cada vez mais fria. Sentado na varanda, a querer imaginar que o verão existe - não passa de uma ilusão quando a noite cai -  sinto frio. Não me desagrada, mas, também, não me entusiasma. Deixo-me ir atrás dos dedos e olho para o anil do céu para poder falar com dois dos meus deuses preferido, Vénus e Júpiter. Olho e vejo que o amor é maior do que o pai dos deuses. Basta apenas uma luz doce para alumiar o início de mais uma noite. A noite atrai morcegos e os medos. A cegueira da vida ilumina-se na frescura de uma noite anunciada esconjurando os medos e matando as esperanças, como se tudo fosse um jogo. Um jogo cujas regras, falsificadas, apenas ajuda os que desprezam a vida. Estes não tem medo, mas sabem gerá-los na mente e na alma dos que acreditam na sinceridade. 

Bronze...

Tinha um nome muito esquisito. Uma situação que começa a ocorrer com alguma frequência. Fiquei com curiosidade. Como será? Ao entrar vi que era africana. O tom bronzeado pelos genes traduzia um aspeto robusto. Aparentava saúde evidente. Com um olhar misterioso, e um comportamento de avezinha assustada, lançou-me um sorriso tímido como a querer dizer, não sei por onde começar. Balbuciou à minha pergunta sacramental e arrematou logo que não estava doente, só que não conseguia dormir e sentia-se ansiosa. Deu o toque para dirigir a conversa. Apercebi-me que ela saberia fazer melhor o diagnóstico do que eu. Perguntei-lhe se sabia quais as razões para o seu estado de ansiedade, mas nem dei tempo que respondesse, emendei logo, dizendo-lhe, então diga-me o que é que se está a passar. Sorriu, baixou os olhos e contou-me que o namorado estava emigrado num pequeno estado europeu. A última vez que estiveram juntos foi no princípio do ano. Desde então nunca mais lhe telefonou, exceto no dia em que

"Miolo de pão"...

Ontem não escrevi. Ontem não tive tempo. Ontem foi dia de pica bois. Ontem já passou e nada deixou. E se deixou foi pouco, algumas conversas, um ou outro sorriso lançado no ar conjuntamente com uma enorme gargalhada muda, uma pequena observação, um sinal de que há gente que confia nos filhos de qualquer ontem e também comportamentos inusitados e inesperados. Há sempre uma qualquer singularidade que se pode medir em função da estupidez e da desconfiança. A boca entreabre-se e o espanto escorre como espuma, como se fosse sinal de manifestação de um toleirão.  Ontem foi mais um dia que se escondeu do passado e não deixou grande alegria. Os "ontens" são mesmo assim, sacos inesperados que libertam odores amargos deixando antever o fim de outros dias. Não servem para grande coisa, apenas deixam uma ou outra recordação capaz de amenizar o coração. Prefiro o dia de amanhã, porque o de hoje vestiu-se como se fosse uma coquete a querer mostrar que é já um ontem cheio de beleza e de

Noites de verão

As noites de verão podem vestir-se de muitas formas. Prefiro as que se apresentem desnudadas, como se fossem palavras quentes, belas e enigmáticas capazes de jogos de sedução. As noites de verão podem ser fonte de desilusão, basta ver a nossa televisão. Tanta exposição para nada, não ensina, não se aprende, não encanta, apenas faz nascer a estranha sensação de que nada presta. Vivemos num mundo cão. As noites de verão podem ser suaves campos de centeio dourado que ondulam ao sabor do vento da fortuna e da inspiração. As noites de verão também morrem do coração.

"Dia sem nada"...

Os dias sucedem-se e não vejo nada. São dias sem nada. Eu sei que faço parte desse nada. O que eu desejaria era não sentir nada, nunca ter visto a luz do sol, o frio do inverno, o calor do prazer ou o desamor da falsa esperança. O que eu queria mesmo era não sentir nada. Para lá caminho, aos trambolhões e a passo acelerado, esquecido dos deuses e lembrado dos demónios dos homens. Olho em redor e sinto um enorme fedor. Fujo para recantos limpos das fúrias e ameaças do homem. Recolho-me à sombra do esquecimento para tentar recordar os momentos em que não havia nada e nem pensava em lamentos. Mergulho em pensamentos, quentes e sedutores, recordo-me de frases belas e refrescantes e tento imaginar como seria a vida se tivesse o mínimo de fôlego de um deus com letra pequena. Esses deuses consigo entendê-los, não se escondem e nem são soberbos. Escondo-me para que ninguém me veja e para que possa sentir o dia do fim do princípio que teima ser o meu advir. Não sinto prazer em ver o que vejo,

Arte DECO

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Um dos períodos mais sedutores, para mim, foi a época dos anos loucos, onde os comportamentos, estilos de vida e a arte adquiriram características muito próprias. Vivia-se à pressa como se o fim do mundo estivesse próprio, e estava mesmo. A beleza e a criatividade eram uma constante. Escolhi esta peça que adquiri recentemente. Adoro arte DECO. Esta estatueta revela a elegância de uma bailarina. Um bronze cheio de vida. Agora repousa no silêncio de uma sala onde respira arte e os sentimentos de uma existência cada vez mais perplexa com tantos acontecimentos que correm por esse mundo fora, sobretudo na Europa. Sinto prazer em tocar-lhe e vê-la a dançar sob os meus olhos, mas faz-me recordar um pequeno episódio de um filme cujo nome não me lembro. Recordo apenas a paisagem, um campo de golfe, onde dois homens fingiam jogar. Comentavam o mundo de então. Previam o que iria acontecer, conflitos armados, morte e destruição, tudo por causa dos extremismos ideológicos, em que os di