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"Duas rosas vermelhas"

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Acabei, ao fim de algum tempo, por saber que teve um passado fermentado pela luxúria, recheado pela aventura e afogado no álcool. Acabou tudo, os primeiros pelo efeito do tempo e o último por vontade própria. Depois começou a perder peso de uma forma assustadora, muitos quilos, tantos, que o homem, já de si perturbado, não sei se pela vivência ou devido à sua estrutura, ficou ainda muito pior. E eu comecei a ficar igualmente. Pus-me a vasculhar pelos meandros do seu corpo para saber onde estaria o gato, mas, por mais voltas que desse, não encontrava nada. Pus a hipótese de que a falta das calorias do tinto seria o responsável, aliada a qualquer perturbação de cariz metabólico não detetável ou a alguma depressão mascarada. Como continuava a emagrecer, joguei, em doses baixas, com o efeito secundário de um medicamento, e, para minha satisfação, deixou de perder peso, começando, lentamente, a engordar. Semana após semana era evidente a alegria do senhor. Eu é que comecei a fi
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T enho uma propens ão para andar em velharias, mas não em antiquários, um hábito com muitos anos, com interrupções mais ou menos longas, dependendo da disponibilidade e sobretudo da existência ou não de comerciantes de coisas velhas. Gosto de chafurdar na poeira, lutar contra algumas teias de aranha e sujeitar-me a ataques de espirros, por vezes compensados com a aquisição de algo interessante. Não sou propriamente um indivíduo que goste de regatear, mas, neste tipo de negócio, paradoxalmente, sabe-me bem. Talvez tenha alguma razão de ser. Como é que se dá valor a coisas "sem utilidade"? Algum valor intrínseco, obviamente, ser ou não raro e sobretudo se é cobiçado ou não pelo comprador. Mas existe outro motivo, fazer conversa com o vendedor, criar empatia, estabelecer alguma relação, ou seja, fazer negócio à maneira dos judeus. Conversar, conversar e depois no fim negociar. É muito mais fácil. H á cerca de dois anos descobri um velhustro. Na altura com

"Escadaria de almas"

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S á bado. Manh ã de sol de uma primavera ser ô dia. Movimento pouco usual na pra ç a. Cavaletes, pintores, batas sujas, cada um para seu lado. Depressa apreendi estar perante uma sess ã o de pintura ao ar livre. H á mais gente? Sim. Andam dispersos por a í . Vasculhei alguns quadros em que pinturas embrion á rias denunciavam os novos seres, para o efeito bastava projet á -las nos espa ç os envolventes. Quando terminam? L á para o fim da tarde est ã o prontos para serem expostos. N ã o foi dif í cil adivinhar que cada artista tinha escolhido as melhores e, tamb é m, as mais previs í veis paisagens. À hora aprazada fui ver o resultado. Alguns mais elaborados, outros menos, mas de qualquer modo demonstrativos de um esfor ç o art í stico. Houve entretanto um quadro que me atraiu de imediato, pela t é cnica, pelo calor e pela forma de abordar a paisagem envolvente. N ã o sendo da terra, era a primeira vez que a visitava, conseguiu fugir ao apelo dos espa ç os mais

Cristo "pescador de almas"

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Há anos, no regresso de uns curtos dias de férias a Castela e Leão, guinei inesperadamente quando li a tabuleta a indicar Sabugal. Sempre desejei conhecer aquela vila. Como nunca se tinha atravessado nas minhas deslocações profissionais, pensei, é hoje. Senti que lhe tinha de prestar vassalagem. Não me arrependi, nem poderia, perante a carga histórica que lhe está associada. Efetuei um pequeno périplo, almocei e fui até ao castelo. O dia escaldava. Cheguei a pensar que o diabo, se passasse por aquelas bandas, deveria sentir-se bastante incomodado. A beleza do local aliada ao silêncio do auge do verão empurraram-me para tempos remotos, provocando-me uma sensação agradável. Certos ambientes ajudam-me a viajar no tempo. Viagens que não desgosto de fazer. Lembrei-me do poeta, aventureiro, herói e brigão Brás Garcia de Mascarenhas, autor do "Viriato Trágico", que ali foi aprisionado como traidor à pátria. Uma vida fascinante, começada em Coimbra quando feriu gr

"O senhor doutor toma medicamentos?"

Entrou no consultório com ar displicente. Via-se que vinha um pouco contrafeito; se não fosse obrigado não punha os pés para aturar estas coisas. Confessou que tinha tido algumas crises desde a última vez, mas tinha deixado de tomar a medicação. A conselho do seu médico assistente, perguntei um pouco ironicamente. Não, fui eu que decidi. E qual a razão? Não gosto e não me apetece tomar drogas. Mas elas são importantes e muito úteis e se não corrigir os seus problemas pode vir a ter complicações graves. A conversa continuou, mas depressa tive de lhe dizer que cada um escolhe o que achar mais conveniente, embora me sentisse desconfortável com tamanha atitude, que quase diria ser matéria de "fé", ao não acreditar e não gostar de medicamentos. E no que toca a "matéria de fé", entendo não me imiscuir, pelo que dei por terminada a conversa, embora tenha continuado com o exame. No final disse-lhe quais os problemas que tinha detetado. Vi que ficou um pouco incomodado e per

Dickens

Manhã cedo, muito cedo. Noite passada à pressa, mesmo assim deu para descansar um pouco, pelo menos fiquei com essa sensação, na realidade as coisas deverão ser muito diferentes, mas não interessa. A realidade é uma coisa e a perceção da mesma é outra, no final é esta última que conta. Vivemos à custa de sensações ou de esperanças que fogem da realidade como o diabo da cruz. O rádio transmite a notícia dos duzentos anos do nascimento de Charles Dickens. Li algumas das suas obras em pequeno e vi alguns filmes produzidos à custa do seu fervor literário, aprendi a correlacionar as más condições de vida com a saúde das pessoas, nomeadamente as crianças, fome e raquitismo, uma praga da época agravada pela falta de sol, uma constante daquelas latitudes a que não terá sido alheio um qualquer arrefecimento climático da altura. Aprendi muito da maldade e intolerância humanas, inconcebíveis para um jovem crente na bondade e sinceridade dos adultos. Por vezes ponho-me a pensar se a minha des

Íris

Nomes. É preciso dar um nome a tudo e a todos, sem nomes caímos no anonimato e com nomes morremos, geralmente, como anónimos. Afinal para que servem os nomes? Para criar a ilusão de que existimos, sem eles não seria possível viver ou fingir que se vive. Olho para lado e vejo sede de nomes, todos têm um, ou mais do que um, mas para quê? Para escrever numa lápide, que o tempo se encarregará de apagar, gozando e desprezando as almas que acreditaram que viver valia alguma coisa. E se não for uma lápide, pode ser uma folha de papel, uma carta de amor ou uma crosta de uma árvore, todos desejosos de eliminar o que quer que seja, e conseguem-no. Os nomes foram criados para um destino fatal, serem esquecidos, e mesmo os que teimam em perpetuar-se não perturbam os seus donos, porque estes esqueceram-se de que um dia existiram. Não há nada mais gratificante do que o desaparecimento de um nome. Quando isso acontece é como se nunca tivesse existido, e quem não existe saboreia uma felicidade impossí