Entrou no consultório com ar displicente. Via-se que vinha um pouco contrafeito; se não fosse obrigado não punha os pés para aturar estas coisas. Confessou que tinha tido algumas crises desde a última vez, mas tinha deixado de tomar a medicação. A conselho do seu médico assistente, perguntei um pouco ironicamente. Não, fui eu que decidi. E qual a razão? Não gosto e não me apetece tomar drogas. Mas elas são importantes e muito úteis e se não corrigir os seus problemas pode vir a ter complicações graves. A conversa continuou, mas depressa tive de lhe dizer que cada um escolhe o que achar mais conveniente, embora me sentisse desconfortável com tamanha atitude, que quase diria ser matéria de "fé", ao não acreditar e não gostar de medicamentos. E no que toca a "matéria de fé", entendo não me imiscuir, pelo que dei por terminada a conversa, embora tenha continuado com o exame. No final disse-lhe quais os problemas que tinha detetado.
Vi que ficou um pouco incomodado e perguntou-me se eram graves. Graves? Não, o que me preocupa, e muito, é a sua atitude mental que pode ter graves consequências no futuro, mas a este propósito estamos falados.
Não deve ter gostado da minha observação e, arrogantemente, perguntou-me, o senhor doutor toma medicamentos? Como quem diz, mandas tomar aos outros, mas tu não os tomas. Interpretei aquela interpelação como tendo sido um soco à maneira e, já que queria luta, retirei do bolso esquerdo do casaco, blisters e uma caixa com comprimidos. Espalhei-os em cima da secretária, ao mesmo tempo que do bolso interior retirava canetas-seringas, lançando-as à sua frente. Tomo! E não é pouco, disse-lhe com uma valente oitava acima do habitual, denotando alguma irritabilidade própria de um temperamental em declínio. Ficou de boca a aberta, contrapondo, mas se fosse há uns anos não os tomava, deduzi que para ele na altura não existiriam, talvez não, mas também já não estava vivo e se estivesse não teria a qualidade que desfruto e espero continuar a gozar nos próximos anos, trabalhando com afinco. Percebeu? Tive a nítida sensação de o ter posto a K.O. Enquanto enchia os alforges com a traquitana dos medicamentos, disse-lhe, sem levantar os olhos, bom-dia, passe bem. Ao sair, ouvi-o dizer, em voz baixa e sem arrogância, obrigado senhor doutor. Fiquei com a sensação de que ia confuso com toda aquela cena. Gostaria de acreditar que tivesse ocorrido alguma mudança de atitude naquela cabeça. Talvez tenha acontecido, não digo que não, mas, para ser sincero, começo a estar farto de certos militantes.
Tenho a certeza que a subtileza do "tratamento" o pôs KO!.
ResponderEliminarMas compreendo o problema do sujeito, apesar de desvalorizar estava certamente preocupado com o que o afligia, mas não queria arcar sózinho com o problema.
É curioso!. Esta história faz-me lembrar a atitude que tomo sempre que vou ao médico (o que é raro, só para os exames de rotina), quando em silêncio o vejo a analisar os exames, pergunto: - Há alguma coisa? É grave?
Julgo que o srº não gostará muito das minhas interrogações, estando ainda em processamentoa, mas lá vai dizendo: -Nada pá, só umas coisitas próprias da p*** da idade!
Respondo:-Porreiro, srº Drº, estou mais aliviado, na nossa idade isso é tramado!. Despeço-me com um até à próxima a pensar se ele não achará que tirei o dia para o chatear!...
Tudo isto para significar que partilhar os "males" pode aliviar-nos (talvez por egoísmo, ou simples sentido gregário...é raro partilharmos o que é bom!), quando afinal descobrimos que o mal dos outros é igual ou pior que o nosso...