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“Sabor da própria morte”

Certas frases e palavras têm a capacidade de nos agredir, de aliviar, de fazer sofrer, de sentir o que é o amor, o desejo, o ódio e, até, o sabor da própria morte. São poucas as que se podem considerar amorfas ou insípidas, mas há outras que são mais destruidoras do que o Vesúvio quando se lembra de incomodar os humanos. A conflitualidade religiosa ou as decisões tomadas em seu nome são, por vezes, iníquas ao esconderem a malignidade humana sob a pretensa magnanimidade do amor a um deus qualquer. O jovem médico no serviço de urgências do velho hospital, que nunca conseguiu adaptar-se às suas funções, descansava, feito porteiro, na noite fria do inverno. Muitas horas já se tinham passado desde que iniciou o seu turno, quase uma dúzia e meia, e ainda faltava meia dúzia, a mais dolorosa, em que o tempo demora a passar. Aquela hora é, habitualmente, uma hora meia-morta, permitindo um breve relaxar. Eis que a noite é interrompida com a entrada de uma mulher, pequena, arranjada à pressa,

Sono do tempo

Tarde cinzenta a querer chorar mas sem vontade. Olha-me com um ar lacrimejante, derramando pequeninas gotas que lentamente acariciam as águas adormecidas acordando-as do seu espelhar de vida. O ar, suave e cálido, tranquiliza o espírito. Um dos raros momentos em que a alma se imobiliza. Sons dispersos, numa cantadeira feliz, inundam o espaço, sem se incomodarem com a presença do ser humano, não lhes interessa. Fazem bem. Folhas secas e enrugadas agarram-se teimosamente aos ramos dos carvalhos. Não caiem, não sabem que já morreram, mesmo que a seu lado brotem novas vidas. O tempo dorme, às tantas sonha, com quê, nem ele sabe, nem irá recordar-se, mas eu estou nele. E se ele não acordasse mais? Sonhar dentro do sono do tempo é o que eu mais queria. Há de chegar esse dia. Na mais bela calma e sem vida.

"Nascidos para a crença"

Não passa um dia em que não leia algo sobre ciência e religião. Um crescendo notável que importa analisar. Saber quais as razões deste fenómeno é perfeitamente natural. Cientistas a descartarem-se da religião e religiosos a tentarem aproximar-se da ciência constituem as principais abordagens ao tema, sem esgotar outras. Um dos principais problemas resulta do facto de alguns pensadores quererem colocar ambas no mesmo plano. A religião procura impor a verdade e a ciência anda à procura dela. A religião "assusta-se" com a ciência, porque teme que as suas verdades absolutas e transcendentais sejam postas em causa por esta última. Uma confusão dos diabos e, também, de alguns cientistas. Li uma afirmação do cardeal patriarca de Lisboa segundo o qual a fé não pode ser analisada ao microscópio: “Há verificações que não se podem fazer nos laboratórios.” E acrescentou: “O impacto de uma experiência religiosa de contacto com Deus não se pode fazer nos laboratórios e não se pode negar. É

Poder e Moral

Divirto-me, é o termo, quando ouço os eticistas a perguntarem a uma audiência o que é que cada um faria no caso de "um comboio ao aproximar-se de uma agulha que dá para duas linhas, numa das quais se encontra um indivíduo e na outra cinco, qual das duas escolheria". A audiência ouve, sente estar perante um dilema, ter de escolher uma solução das duas previsíveis. Ouve-se, porque é fácil concluir, que optariam por matar uma pessoa em vez das cinco. Rio-me. Se estivesse presente na sessão e tivesse que responder diria simplesmente, quando estiver numa situação dessas logo verei. Não sei responder, tenho de a vivenciar e só nessas circunstâncias é que saberei. As regras morais são construídas com o propósito de gerir e apaziguar as tensões dentro de um grupo facilitando a convivência. Alguns afirmam que perante indivíduos em risco de serem sacrificados escolheremos os que não têm qualquer parentesco connosco. Mas as coisas não são tão lineares como isso, apesar da força da selec

Monarquia

Tenho reparado que anda por aí um determinado movimento, nostálgico, que pretende restaurar a monarquia. Apontam várias razões para o efeito, entre as quais pontua o descontentamento com determinadas figuras políticas, como se a alternativa "real" fosse garantia de idoneidade e sinónimo de "virtude". Afirmam, e é verdade, que acabaram com a monarquia "à porra e à maça". Segundo os monárquicos a implantação da república não foi democrática, porque não houve referendo, o povo não foi ouvido, não senhor, não houve referendo, como se a monarquia de então propiciasse meios para esse efeito! Se assim fosse, o negócio das revoluções ia por água abaixo. Não consigo compreender, apesar de inúmeros argumentos dos defensores, que apontam para a beleza, a superioridade e a riqueza das ditas monarquias constitucionais como sendo o melhor regime capaz de solucionar alguns dos nossos problemas, que considerem o direito de "comandar" ou "representar" u

Violência

Sábado. Convidaram-me para a sessão de encerramento de um colóquio sobre Violência Doméstica. Ouvi autoridades policiais, psicólogas, assistente sociais e outras que têm a cargo a responsabilidade de lutar e minimizar este flagelo. Foi agradável. Teve lugar na casa da cultura de Santa Comba Dão. A notícia do acontecimento não teve impacto, o que é perfeitamente natural. Em contrapartida, a "ameaça" ou a "violência" do vinho marca "Salazar" teve honras de primeiro plano nos telejornais e jornais. Santa Comba Dão no seu melhor. Tive que dizer alguma coisa, e disse. O assunto violência não é novo e penso que vale a pena refletir um pouco sobre o mesmo. O homem é um ser agressivo e há razões para isso, até poderia afirmar categoricamente que sem essa característica não teríamos chegado aonde chegámos. Sendo assim, não posso deixar de analisar, ainda que sumariamente, alguns aspetos relacionados com a agressividade comportamental, que tem sido estudada ao long

Cinco de outubro!

Era um catraio despreocupado e já "sabia" o que era o cinco de outubro. Tomara, tive um avô republicano que não se calava sempre que vinha à liça o assunto da república; punha-se a falar de acontecimentos, de pessoas, de greves, de atentados, como se eu estivesse estado presente ou tivesse conhecido os protagonistas! Dissertava, comentava e insultava com um calor especial. Parecia que se embriagava com a história daquele período. Só o via assim quando falava do fim da monarquia e da implantação da república. Também me apercebia de que era crítico de muitas coisas que aconteceram naquele período. Quando chegava ao Estado Novo baixava a voz, remexia-se na cadeira, olhava para os lados, o bigode tremia-lhe e ficava nervoso. Só muitos anos depois é que percebi as razões. Soube o que foi a dureza do regime. Rapidamente ultrapassava a situação, regressando sempre ao cinco de outubro, símbolo da mudança de regime e esperança de um futuro melhor. Mais esperança do que certeza. Mesmo