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"E este?"

Quando a vi pela primeira vez senti curiosidade em saber que idade teria, mas não lhe perguntei, porque o programa facultou-me de imediato, 86 anos, idade real que não casava muito bem com a idade aparente. Fugia ao habitual, revelando uma desinibição a recordar uma meia loucura, devidamente controlada, típica de mulheres sensuais. Retirei-lhe as rugas da face, dei um pouco de brilho à pele, pintei-lhe os lábios, penteei-a à maneira, e não foi preciso vidrar-lhe os olhos, porque ainda tinham um fulgor luminoso de outros tempos e malícia quando basta. Queixava-se de muitas maleitas, mas não eram nada de preocupante, exceto aquela coisa do coração. Os exames não revelaram qualquer anomalia e, além de mais, conseguia caracterizar com uma precisão matemática quando tudo começava, sempre que o marido estava em casa, uma matação. Assim que ele sai, fico logo melhor, mas dá-me cabo do juízo, senhor doutor, fico logo a tremer quando ele entra, assim, quer ver, e imitava o quadro, lançando as m

Dois loucos.

Criar hábitos ou rotinas é uma das minhas principais características, é-me tão fácil que chego a pensar se não sofro de qualquer propensão para ser adicto. Por isso o melhor é escolher os mais saudáveis, ou, então, os que não sejam muito perigosos. Ajudam a equilibrar o dia-a-dia e se forem bem aproveitados permitem colher elementos interessantes que nos obrigam a refletir melhor sobre a vida e os seres humanos. Aproveitar a hora de almoço, quando estou fora de casa, para ler ou para escrevinhar é muito agradável. Faço-o frequentemente. Num do locais onde vou regularmente aproprio-me de um banco de madeira à porta de um cemitério, debaixo de uma árvore que faz de excelente guarda-sol. O que já li e o que já escrevi naquele local, e, também, o que já vi! Sabe-me bem. Não me incomoda nada o que está para além do portão. Entram e saem pessoas, eu vejo-as, tentando penetrar nas suas almas, para logo mergulhar na escrita ou na leitura. São muito poucos segundos, não dão para grande coisa. A

O negro vestido de cor de rosa.

Há uma pequena recordação de infância que nunca pude esquecer, pela beleza, pelo toque e, sobretudo, pela sensação que me produziu. Nesta altura do ano, quando me levantava mais cedo, agora é mais do que habitual, passou a ser um castigo, sentia ao alvorecer a ameaça do calor e a frescura matinal. Uma estranha combinação, sensação de calor e de frescura simultaneamente, que ocorre apenas durante um breve período. Está dito, é a combinação mais preciosa que conheço, porque consegue justificar a vida, pelo menos temporariamente. As justificações têm uma duração própria, renováveis caso o interessado assim o manifeste. Hoje, durante a curta viagem, surgiu na minha mente a figura do negro vestido cor de rosa da cabeça aos pés. Chapéu cor de rosa, casaco, camisa, gravata, calças e sapatos cor de rosa a realçar o negro brilhante da cara. Na mão direita um trompete, na esquerda um lenço, por acaso também cor de rosa. Surgiu do nada, no outro lado da rua, em pleno início da manhã. Tinha acab

"Miserável sentir"...

Estou irritado, o sacana de um vírus lembrou-se de que eu era um bom hospedeiro para dar continuidade à sua existência, uma besta qualquer que não pensa, que nem autonomia tem para se reproduzir, um estúpido que nem sabe das vantagens da transmissão sexual, um perfeito palerma que se tivesse consciência da sua existência ainda era capaz de argumentar que estava a fazer bem à minha saúde ao estimular o meu sistema imunológico ou coisa parecida como se isso fosse alguma vantagem para mim, face ao que terei de esperar a curto ou a médio prazo. Sacana, consegue mas é fazer-me sentir miserável e ainda por cima tenho de trabalhar. E a este propósito, trabalho, levantei-me muito cedo para cumprir com as minhas obrigações e respeitar os direitos dos outros. Como já vem sendo habitual não consegui começar a horas devido ao tradicional e lusitano atraso de um colaborador que não sabe ou não lhe apetece chegar a horas. Senti-me miserável. Dei uma volta para espairecer as minhas misérias e vi que

Amélie

Lembro-me ter lido, há três ou quatro anos, uma notícia sobre uma senhora belga de idade que sofria de polipatologia, Amélie, de sua graça, que conseguiu que lhe fosse feita eutanásia, depois de fazer greve de fome. Escrevinhei um pequeno texto sobre o assunto. Procurei-o. Ei-lo! A D. Amélia, com os seus 94 anos e muitas maleitas em cima, tem revelado ultimamente um quadro a que poderei chamar “cansaço de viver”. Atormentada com as dores e com significativas dificuldades na marcha, em ver, em ouvir e com um coração que há mais de vinte anos anda a ameaçar que a vai matar, lamenta-se, dizendo que já não vale a pena viver, que está cansada, que já viveu muito e que não tem nada a esperar do tempo que lhe resta ou que lhe sobra. Acresce a este discurso o muito que a vida já lhe proporcionou, tragédias e sofrimentos, os quais, ao recordar-se, agravam o seu estado de saúde. Ouço-a em silêncio e transmito o máximo de respeitabilidade pelas suas considerações. Quando deteto uma certa acalmia

"O primeiro dia de escola"...

Jorge entrou para a escola primária no dia sete de Outubro de 1957. Um dia radiante, cheio de sol. Nas vésperas andava ansioso com a expectativa da nova experiência. Os preparativos não foram nada de especial. Uma lousa e o respetivo lápis, um caderno sem linhas com umas capas transparentes e finas, com duas imagens, um casal de crianças, ela de tranças, ele de calções e ambos com uma sacola a tiracolo a correr em direção à escola com a bandeira da mocidade no mastro. O que ele gostava mais era da mala. Uma mala de cartão prensado, grená, com uma estreita tira de coro para colocar ao ombro. Orgulhoso da mala, deixaram-no no recreio com os outros meninos, uns tão novatos como ele, os restantes eram verdadeiros veteranos, alguns muito crescidos para andar na escola, pensou. Descalços, a maioria, um ou outro com umas pobre sandálias ou tamancos e quase todos com sacas de pano, quase sempre de serapilheira, onde guardavam a lousa, invariavelmente partida, e um naco seco de boroa. Olhavam p

Sopro de vida...

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Há coisas que não esqueço, porque é impossível olvidar frases ou explicações que esculpiram o pensamento de uma criança de forma lapidar, obrigando a construir misteriosas fantasias. Numa tarde de sol, sentado no chão com a restante canalha, ouvíamos da boca doce e monocórdica do padre a criação do mundo. Era o último dia da Criação. Deus lembrou-se de agarrar num bocado de barro e soprou-o dando vida ao primeiro homem. A forma solene, simples e sincera de uma personagem prestigiada, como era o padre, fez-me acreditar, pelo menos nos primeiros instantes, que a história seria verdadeira. Recordo ter imaginado um pedaço de barro, idêntico ao que os oleiros usam para fazer as cântaras, a rodar, enquanto as "mãos" do Criador lhe davam forma humana. Depois, no final, soprou-lhe na boca e a estátua de barro adquiriu vida e movimento. Não atribui qualquer representação a Deus, por uma simples razão, como não havia ainda homens e mulheres não lhe podia atribu