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Amélie

Lembro-me ter lido, há três ou quatro anos, uma notícia sobre uma senhora belga de idade que sofria de polipatologia, Amélie, de sua graça, que conseguiu que lhe fosse feita eutanásia, depois de fazer greve de fome. Escrevinhei um pequeno texto sobre o assunto. Procurei-o. Ei-lo!

A D. Amélia, com os seus 94 anos e muitas maleitas em cima, tem revelado ultimamente um quadro a que poderei chamar “cansaço de viver”. Atormentada com as dores e com significativas dificuldades na marcha, em ver, em ouvir e com um coração que há mais de vinte anos anda a ameaçar que a vai matar, lamenta-se, dizendo que já não vale a pena viver, que está cansada, que já viveu muito e que não tem nada a esperar do tempo que lhe resta ou que lhe sobra. Acresce a este discurso o muito que a vida já lhe proporcionou, tragédias e sofrimentos, os quais, ao recordar-se, agravam o seu estado de saúde. Ouço-a em silêncio e transmito o máximo de respeitabilidade pelas suas considerações. Quando deteto uma certa acalmia, interpelo-a, dizendo-lhe que está muito bem penteada. Da última vez trazia um novo penteado que lhe ficava a matar. Foi o que eu fiz: - A senhora está mesmo muito bonita! – Acha senhor doutor? – Claro! Sabe muito bem que gosto de ver uma senhora de idade, ou melhor, sejamos francos, uma velhinha toda composta e bem penteada. – Mas para quê, senhor doutor! Nem imagina o esforço que tenho que fazer para ir à cabeleireira. Só Deus é que sabe o meu sacrifício! – Está bem, mas fica muito mais bonita. A senhora quando era nova devia ser uma beleza difícil de igualar. – Não é para me gabar, mas de facto até era. E sabe que mais, pretendentes eram uns atrás de outros. – Bons tempos, não é verdade D. Amélia? – Ai se foram! Hum! O que o senhor doutor quer é tirar nabos da púcara! Pois olhe, vou-lhe contar algo que eu nunca disse a ninguém, sabe? Tinha uns dezanove anos e queria ir a um bailarico, mas, como compreende, naquele tempo, não era como hoje, não era nada fácil, e foi então que...

Sem dores, sem sofrimento, com um sorriso estampado na face, acompanhada do tal coração que há vinte anos anda a tentar matá-la, e que teve que gramar o reviver de certas emoções, D. Amélia contou uma peripécia que só nós os dois conhecemos. E que peripécia! No final, despedi-me com aquela ansiedade típica destes casos; “será que nunca mais a verei?”. Ao mesmo tempo acalentei a senhora, dizendo-lhe que para a próxima vez teria de contar mais coisas belas. Sorriu. Não tinha acabado de dar dois passos quando comentou: - Vou ver se consigo estar ainda viva!

Lembrei-me da D. Amélia por causa de Amélie, a belga de 93 anos que chegou a fazer greve de fome como forma de protesto por não lhe aplicarem a eutanásia.

Na Bélgica, a eutanásia é permitida desde que o doente sofra de doença fatal. No caso de Amélie, a doença não era fatal, sofria de polipatologia que a obrigava a permanecer acamada. Estava cansada de viver e pedia que a “deixassem morrer”. Acredito que sim, que estivesse cansada de viver, porque esta situação começa a ser mais comum do que parece. A belga deixou de fazer greve da fome ao fim de dois dias, e conseguiu, após um pedido por escrito, que fosse objeto de eutanásia praticado por um clínico, no dia um de Abril.

Estou convicto que se a fizessem recordar as coisas belas da sua vida, e se fosse submetida a um adequado penteado, Amélie ainda teria tempo para reviver o passado, mesmo que o futuro fosse o mais cruel possível.

Um dia destes, inevitavelmente, a D. Amélia acabará por liquidar o seu próprio coração, o tal que há mais de vinte anos anda, paranoicamente, a tentar matá-la. Estou certo, e se não estiver desejo vivamente, que tal acontecerá durante o sono, ao sonhar com alguma das suas peripécias em que o seu coração foi protagonista, e se este não aguentar, paciência, “amor com amor se paga”...

Está uma excelente tarde, céu azul e transparente. Vou vê-la, mas ela não sabe. Agora reparo, nunca mais soube da D. Amélia. Deve estar bem. Onde? Não interessa.

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