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"E este?"

Quando a vi pela primeira vez senti curiosidade em saber que idade teria, mas não lhe perguntei, porque o programa facultou-me de imediato, 86 anos, idade real que não casava muito bem com a idade aparente. Fugia ao habitual, revelando uma desinibição a recordar uma meia loucura, devidamente controlada, típica de mulheres sensuais. Retirei-lhe as rugas da face, dei um pouco de brilho à pele, pintei-lhe os lábios, penteei-a à maneira, e não foi preciso vidrar-lhe os olhos, porque ainda tinham um fulgor luminoso de outros tempos e malícia quando basta. Queixava-se de muitas maleitas, mas não eram nada de preocupante, exceto aquela coisa do coração. Os exames não revelaram qualquer anomalia e, além de mais, conseguia caracterizar com uma precisão matemática quando tudo começava, sempre que o marido estava em casa, uma matação. Assim que ele sai, fico logo melhor, mas dá-me cabo do juízo, senhor doutor, fico logo a tremer quando ele entra, assim, quer ver, e imitava o quadro, lançando as mãos à minha frente, explicando tudo com uma voz meio rouca e simultaneamente bem timbrada. O que é que acha? O que é que eu tenho? É muito grave, não é? As perguntas multiplicavam-se, a minha vontade era dizer, então não vê que o mal é o seu marido? Mas evitava enveredar por este tipo de conversa. A história repetia-se sempre que a via. Na última consulta fez-se acompanhar de um sujeito mais baixo, ar rechonchudo, simpático que se sentou a seu lado. Coloca-me o "saco dos velhos" com múltiplas caixas de medicamentos e blisters espalhados, e disse-me, veja lá o que é que eu devo tomar. Tantos, caramba, a senhora toma isto tudo, tomo, mas não quero tomar tantos, está bem, fiz uma limpeza e "aquilo" ficou reduzido a menos de metade. Vai ficar muito melhor, qual quê, com este a meu lado? Fez um gesto de cabeça tombando-a para o seu lado direito. Foi então que reportou, este aqui é o meu marido, o tal que me dá cabo da cabeça, também quer ser consultado, tem umas análises e está preocupado, disse isto tudo sem lhe espetar os olhos em cima. Dirigi-me ao senhor que, muito delicadamente, se apresentou, numa voz suave, revelando maneiras, e disse de rompante, eu tenho 93 anos, senhor doutor, revelando orgulho de um feito conseguido apenas por alguns. Parabéns, o senhor não aparenta mais de setenta. Tomara, há mais de quarenta anos que não faz nada, só vê televisão, anda com os amigos na borga e chega todos os dias a casa acompanhado, como é que há de parecer velho, disse com voz corretora a sua mulher. Mostrou-me as análises e via-se que tinha algumas alterações de pouco monta, nada de grave, que o próprio atribuiu ao álcool. Agora só tenho bebido ao almoço. Pois, faz muito bem, não pode beber fora das refeições e a estas apenas um copo pequeno, está bem? Não quis ser castrador, aos 93 anos, com tamanhas capacidades intelectuais, seria uma arbitrariedade sem sentido se impusesse mais limitações. A conversa continuou com as queixas da mulher a dizer que estavam casados há sessenta anos e que todos os dias o marido chegava a casa acompanhada da "outra". A conversa continuou, desta feita centrada novamente na senhora a quem mais uma vez lhe disse que estava bem, que iria durar mais de dez anos e que não se preocupasse com as suas pequenas queixas. Quando lhe disse que ia viver no mínimo mais dez anos, pisca-me o olho, sorri maliciosamente e tomba a cabeça para o seu lado direito como quem diz, e este? Bom, nada impede que também consiga. Oh que chatice, sessenta anos de casada mais dez dá setenta. Estou tramada...
Ai meu Deus! Consegui, muito a custo, refrear uma gargalhada e pensei, espero que não continuem com a conversa em casa. O mais certo!

Comentários

  1. Presumo que a "outra" seria a bebedeira, não é Professor?; outra expressão a que achei muita graça foi o "saco dos velhos"...
    Gostei muito de ler.

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  2. Acompanhados na saúde pelo Dr. Salvador; que remédio têm eles, senão aguentar mais dez anos... no mínimo.
    ;)

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