"Miserável sentir"...

Estou irritado, o sacana de um vírus lembrou-se de que eu era um bom hospedeiro para dar continuidade à sua existência, uma besta qualquer que não pensa, que nem autonomia tem para se reproduzir, um estúpido que nem sabe das vantagens da transmissão sexual, um perfeito palerma que se tivesse consciência da sua existência ainda era capaz de argumentar que estava a fazer bem à minha saúde ao estimular o meu sistema imunológico ou coisa parecida como se isso fosse alguma vantagem para mim, face ao que terei de esperar a curto ou a médio prazo. Sacana, consegue mas é fazer-me sentir miserável e ainda por cima tenho de trabalhar. E a este propósito, trabalho, levantei-me muito cedo para cumprir com as minhas obrigações e respeitar os direitos dos outros. Como já vem sendo habitual não consegui começar a horas devido ao tradicional e lusitano atraso de um colaborador que não sabe ou não lhe apetece chegar a horas. Senti-me miserável. Dei uma volta para espairecer as minhas misérias e vi que o belo rio, perto da vagina da serra que o pariu, não tinha uma gota de água. Alargaram e cimentaram o seu leito e emparedaram-no com pompa e circunstância. Senti-me miserável perante um rio seco, nem uma lágrima de tristeza conseguiu botar, não por falta de vontade, nem por vergonha, mas por falta de água. Começo a ver os trabalhadores. Alguns já conheço de anos anteriores. Os mesmos problemas, as mesmas patologias e a mesma indiferença face aos conselhos. Os trabalhadores hipertensos continuavam hipertensos, os que sofrem de diabetes continuavam olimpicamente descontrolados, os que apresentavam alterações hepáticas devidas ao abuso do álcool continuam com as alterações e assim sucessivamente, transmitindo-me a ideia de que pouco ou nada vale tentar alterar os hábitos de certas pessoas. Ainda estive para lhes perguntar o que é que achavam do bosão de Higgs, mas calei-me, porque o problema não está na descoberta desta partícula, que pode explicar muita coisa, sobretudo a massa, mas sim na descoberta e finalidade da partícula da estupidez, e não é preciso nenhum acelerador de partículas. Fizeram-me sentir miserável. A continuar assim não tarda deixo de reagir, equiparando-os a verdadeiros neutrinos, essas estranhas partículas que atravessam tudo e todos sem darmos conta da sua existência. Almoço com rapidez. Desta feita o polvo está duro. Mais uma, pensei. E o raio do vírus a incomodar-me cada vez mais, ao mesmo tempo que as conversas atrevidas da televisão me chagavam o pensamento. É demais. Não, não é demais coisa nenhuma, as conversas dos meus vizinhos da casa de pasto complementavam o quadro com os seus ditos, opiniões e soluções para a crise, fazendo com que o polvo se tornasse quase intragável, e sem culpa. Entretanto, as notícias e comentários políticos sobre os assuntos do dia causavam-me perplexidade e tristeza obrigando-me a reemergir o sentimento de miséria como se fosse aquele géiser do parque do Yellowstone, grande e bonito de de ver, mas perigoso de tocar ou de ser tocado. Miséria das misérias, como é que hei de dar a volta a este estado de coisas? Um analgésico não chega, um copo de bom vinho não é suficiente, morder com afinco o polvo é o menos, calar-me perante a indiferença dos trabalhadores aos conselhos sempre ajuda, escrevinhar algumas palavras e pensamentos poderá ser uma via, mas, espero com ansiedade que hoje, ao final do dia, depois do jantar, possa ir à livraria comprar alguns livros que permitam afogar-me como um suicida nas suas páginas, enredos e pensamentos. Nada melhor do que um bom livro para ultrapassar este miserável sentir.

Comentários

  1. Não desista nem desanime, caro Professor Massano Cardoso, arraste esses pedregulhos montanha acima...

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