Avançar para o conteúdo principal

Bolo de anos






Faria hoje noventa anos. Morreu três dias após ter completado oitenta e oito anos, depois de um longo processo de sofrimento. Acordei a meio da noite ansioso perante um estranho silêncio. Pressenti que algo se estaria a passar. Entrei no quarto e apercebi-me da realidade, tinha acabado de adormecer no sono mais profundo que a vida pode proporcionar. 
A neta mais nova tinha, na altura, pouco mais de dois anos. O que é curioso foi o facto de nunca a ter esquecido. Quis saber para onde tinha ido e tivemos de apontar para uma estrela brilhante dizendo que estava ali. A partir de então procura-a sempre que pode, o pior é quando o céu não está visível. Nessa altura diz que deve estar a dormir. 
Vai ser, muito provavelmente, a sua memória mais antiga. Como a avó fazia anos no dia seguinte ao da mãe, quis, desde ontem, saber como é que ela iria fazer a festa, quem é que iria cantar os "parabéns a você", quem é que iria fazer o bolo, como seria o bolo, enfim, uma metralhada de perguntas que nunca mais acabava. Até queria ir ao céu passar o dia de anos. Tiveram de lhe explicar que era muito complicado, seria preciso um foguetão e demoraria a chegar a tempo. Calou-se e aceitou as explicações.
Antevi que o dia de hoje iria ser um pouco complicado para a menina. E assim foi, à noite recebi um telefonema a dar conta do sucedido. A mãe teve de arranjar à pressa uma explicação de como seria o bolo de anos da vovó Aninhas.
Partilho aqui essa pequena história. 

"Queria, porque queria, a todo custo que lhe dissesse ou lhe mostrasse como seria o bolo de aniversário da avó Aninhas.
Dei voltas à minha cabeça, até que encontrei esta imagem e a chamei: "Leonor, anda cá!"
Sem saber do que se tratava lá veio ela, sempre a cantarolar... 
Mostrei-lhe finalmente o tão esperado bolo. Reação:
- Ena pá!!!!! Puxa, é muito grande e tem tantas estrelas, parece um céu, não é mamã?!
- É pois... É muito lindo!
- Qual das estrelas é a vovó? 
Hummm... Perguntas tão difíceis de responder, pensei eu.
- É a que está no meio, filha, as outras todas são as suas amigas do céu!
-Ahhh... Tem muitas amigas lá!
- Sim, claro, amigas, amigos e o Jesus que olha por todas elas!
- Pois... E o Jesus sabe tudo, até fazer bolos... Muito bem!"

Uma delícia ter netos assim...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...