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"Não ter medo da bondade"


Ouvir dizer que "não devemos ter medo da bondade" perturbou-me. Uma frase não feita, não encomendada, apenas sentida por quem deve gostar e acredita na vida. A frase perturbou-me e, muito provavelmente, não a irei esquecer. Qual o seu sentido, qual o seu alcance, qual a sua origem? Não importa qual, o que importa é que vai ficar na mente de alguns, na minha vai ficar com toda a certeza. Sempre irá ajudar-me a esconjurar a maldade que abunda por aí. Não esconjura nada, mas não há nada melhor do que acreditar numa esperança vã, dá sentido e significado, ainda que momentaneamente, à vida, enquanto a sentimos ou enquanto ela se faz sentir, tanto faz.
Ouvir dizer que "não devemos ter medo da bondade" aleijou-me, porque no momento em que a ouvi estava a ler um pequeno artigo sobre uma das mais horríveis manifestações de um representante da espécie humana, Joseph Mengel, o "Anjo da Morte", um dos poucos demónios que nunca foi capturado e julgado pelos seus atos criminosos. Ao reler algumas das suas atividades e "experiências" senti um sabor nauseabundo a percorrer aquilo a que podemos chamar alma, coisa que não sei bem o que é, ou se existe, mas que interpreto como uma sopa quente de sentimentos, de emoções, de esperanças, de temores e de dissabores, sem pernas, sem braços, sem memória, sem nada, algo confuso que vive sem saber que vive. Incomodou-me a circunstância de ter de ouvir e de ler, praticamente ao mesmo tempo, o conselho a não ter medo da bondade e o renascer do medo da maldade. Velhos medos, humanos, diabólicos e divinos, a fazerem das suas, a convidarem-me à fuga ou ir ao encontro do que não sei e nem sei se valerá a pena. Fugir ou encontrar são duas faces da mesma moeda da vida, moeda cara e fria, embora leve e bela por vezes. Assusta-me a maldade humana, uma maldade projetada nos demónios. Pobres demónios. Nem eles são capazes de fazer o que pode fazer um humano. Assusta-me não fazer "bondade", mas assusta-me mais o alheamento da bondade divina. Os deuses devem ter inveja de muitos humanos porque estes são capazes de atos de bondade que nem lhes passa pelas divinais mentes. Mas afinal o que é o ser humano? Um somatório de sentimentos e de emoções com vida própria capaz de oscilar entre a maldade absoluta e uma divinal bondade. Onde pairamos neste longo espetro de sentimentos e de emoções? Algures.
Eu tenho muito medo da maldade, mas, afinal, o que eu queria era não ter medo da bondade...

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