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"FIM"...

Uma segunda-feira fresca, sem sol e sem movimento. Caem umas gotas de água como se alguém estivesse a tecer uma delicada cortina.
Aguardo a hora da aula. É a ultima que vou dar. Simples. Provavelmente não vão estar mais do que meia dúzia de alunos. O habitual. Tenho a aula, nova, preparada há muito, mas irei comentar apenas a parte inicial. Não a vou terminar, eu é que termino.
Estou sozinho. Não vou ter companhia e muito menos a festa do costume a enobrecer e a premiar quem lecionou durante tantos anos, mais de quarenta. Não esperei pela idade da jubilação. Saio agora, no momento certo, durante uma aula normal sem mais nada. Acompanho-me a mim próprio além das memórias de uma vida. Não sinto tristeza, não sinto angústia, não sinto qualquer espécie de alegria, apenas vou viver mais um dia.
Vou terminar a minha carreira académica como se a morte fosse a verdadeira razão da vida, sair de cena. Lá fora tudo vai continuar na sua estranha e mais do que previsível rotina. Eu não fujo, nem neste dia.
Trago comigo alguns exemplares de um dos muitos livros que escrevi. Escolhi-o intencionalmente, "Raminho de Alecrim". Intitula-se assim por causa de uma velha doente, simples, envergonhada, sempre com um lenço branco na mão para colher a saliva que lhe caia constantemente dos cantos da boca, que deixava ao sair, sem que me apercebesse, um raminho de alecrim em cima da secretária. Pensava que era esquecimento, mas não. Um dia perguntei-lhe a razão. Respondeu-me através de um largo sorriso sem dentes: - É para dar cheiro. Quer ver como se faz? Esfregou o ramo com as mãos e depois cheirou-as. - Faço assim e depois fica-se com o cheirinho de alecrim. Um sorriso rasgado em que a cor das gengivas atingia as faces de tão envergonhada que se sentia com a explicação.
Não tenho alecrim à mão, mas tenho o livro com a história.
Expliquei aos oito alunos que estavam na sala a razão de ser da minha última aula, contando alguns pormenores da minha vida, poucos, mas o suficiente para não me esquecerem. No final disse-lhes: - Não tenho ramos de alecrim. Espero que o meu livro liberte também um cheirinho, um aroma de uma vida dedicada ao ensino e à investigação.
Ofereci oito livros. Em troca recebi oito olhares e sorrisos de ternura acompanhados de uma inesquecível salva de palmas.

Fim.

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