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Olga

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Sempre que olho para a Rússia pressinto que os velhos tiques da ditadura vermelha continuam a fazer das suas. Há certos comportamentos que não se perdem por mais voltas que se deem, é algo intrínseco, faz parte da cultura dos povos. O caso concreto que irei abordar comprova, penso eu, esta visão. Foi presa uma cientista, de sua graça, Olga Zelenina, acusada de auxiliar traficantes de droga. O é que a senhora fez para ser objeto de tão grave acusação? Elaborou, na sua qualidade de perita em química analítica, relatórios para a defesa de um homem de negócios, Sérgio Shilov, sob investigação por tráfico de narcóticos. Avaliou a concentração de opiáceos numa importação de sementes de papoila para serem usadas na alimentação, pão e bolos. As sementes de papoila (Papaver somniferum) não contém alcaloides, estas substâncias aparecem noutras partes da planta. Na embarcação que levou de Espanha para Rússia as sementes de papoila, Zelenina verificou que as concentrações eram desprezívei

Má conduta

A determinada altura falei do erro médico, algo a que nenhum clínico consegue fugir, uma fatalidade marcada pela imprevisibilidade de inúmeros acontecimentos que nos fogem ao controlo. Nem os deuses conseguem dominar a natureza humana quanto mais um ser humano. Expliquei-lhes que ninguém consegue evitá-lo, mas podemos minimizá-lo, facto que está ao nosso alcance, desde que dominemos algumas técnicas, técnicas e princípios que me compete descrever e ensinar. Olharam-me em silêncio. Todos os que estão neste auditório irão cometer erros, todos, afirmei com solenidade. Para vivermos com eles temos de compreender as razões do mesmo, evitando que nos acusem de negligência ou que o remorso corroa a nossa alma, porque uma alma corroída procura sempre novos erros. Erro é diferente de negligência, erro é diferente de má conduta médica. O erro é previsível, é aceitável e com alguma frequência impossível de evitar. Não é a falta de sabedoria ou de honestidade que o faz emergir dentro do oceano

Para a Mariana

Vejo-a todos os anos. Uma rotina que a obrigatoriedade da lei impõe. Lembro-me de a ter visto pela primeira vez há mais de dezasseis anos. Na altura contou-me a história das suas filhas gémeas, iguais como duas gotas de água que ao nascer sofreram destinos diferentes, uma ficou sã enquanto a segunda, por maldição do destino, ficou com uma gravíssima paralisia cerebral. Duas gémeas transformadas em dois seres diferentes, que o tempo se encarregou de comprovar. A primeira vez que ouvi a história fiquei incomodado, o raio da profissão nunca conseguiu nem consegue imunizar os meus sentimentos, provocando-me verdadeiras lacerações da alma que nem em cicatrizes conseguem transformar-se, porque são chagas vivas que a todo o momento gritam de dor e de incompreensão. Nunca vi a menina, mas fui acompanhando-a através dos relatos da mãe, até que, há quase quatro anos tive conhecimento do seu passamento. Avisaram-me um pouco antes da consulta. A senhora entrou e vi o seu estado de alma, contou-me

"Medo"

No livro "O medo", de Zweig, Irene personifica o medo, essa forma horrorosa de saber que está viva ao ser alvo de interesse de outro ser humano que a sabe explorar em seu proveito os seus desejos e intimidade. O livro atrai-me e repulsa-me ao mesmo tempo. Atrai-me pela profundidade e minúcia com que o autor disseca a alma humana e repulsa-me porque faz reviver os meus próprio medos. Ficção? Sim, mas nem por isso deixa de ser verdadeira e se for necessário também posso recuar ao dia de São Valentim de 1989, quando Khomeini declarou a fatwa sobre Salman Rushdie. Passados estes anos, é estimulante ler o relato do escritor sobre a sua condenação à morte e a forma distante como analisa o ocorrido, sobretudo o seu medo. Viver escondido por medo é horrível, é um corroer permanente das entranhas. O medo constitui o mecanismo mais elementar de sobrevivência, sem medo não existiríamos, mas quando se prolonga no tempo ou quando se estende a outras esferas passa a constituir uma font

"Racionamento benigno"

É uma senhora sofrida, e tem raz ã o. A maldita da doen ç a provoca-lhe sofrimento atroz e reduz-lhe a liberdade para a realiza çã o de triviais atos, impossibilitando-a de ganhar a vida como desejaria. Luta com denodo, cumpre rigorosamente a prescri çã o, conhece na carne os malditos efeitos secund á rios dos f á rmacos que, teimosamente, n ã o a libertam da dor e da incapacidade. Luta, e luta a s é rio. Nas nossas conversas denota uma atitude cr í tica, fundamentada nos problemas sociais e nas prioridades m é dicas. Habituei-me ao seu discurso. Inicialmente considerei-o como equivalente a uma forma de despeito, mas estava errado, tenho de confessar. A minha costela preconceituosa ainda geme e faz-me gemer, mas acabo por aprender, e, habitualmente, com quem menos espero. Sempre na expectativa de poder melhorar, lutou para que lhe fosse feito o tratamento biol ó gico no hospital. Conseguiu. Foi aceite. Ao fim de pouco tempo come ç ou a melhorar a olhos vistos. Senti a emerg ê ncia d

Ciência e mitos

Considero um cocktail saboroso quando a poesia, a ci ê ncia e a hist ó ria enchem a imagina çã o construindo certas not í cias, as quais s ã o uma fonte preciosa de especula çã o. Especular é uma necessidade, um adorno para o nosso c é rebro a relembrar belos colares e an é is, joias da mente que necessitam de espa ç o, de gente que as contemplem, que as copiem, que se inspirem nas mesmas, fomentando novas ideias. Adoro ler novas vis õ es e interpreta çõ es mesmo que n ã o correspondam à realidade, j á que viver no mundo da fantasia é a aspira çã o natural de uma crian ç a e a m á xima de um adulto consciente. Dizem os entendidos que o monote í smo nasceu no antigo Egito, provocando mudan ç as radicais na forma de ver o mundo e na pr ó pria organiza çã o social. Claro que tal transforma çã o n ã o agradou a muitos, mas é certo e sabido que certas mudan ç as arrastam sempre consigo mal-estar, raiva e o ó dio. Naquela zona do mundo, s ã o in ú meros os segre

Fio invisível

Quem não consegue ver ou sentir a presença do corpo de um amado não consegue ter paz. Quanto à alma do defunto não sei se sentirá o mesmo, pode ser que sim. Mais do que dar descanso aos mortos o que é preciso é aliviar a ansiedade dos vivos, cortando-lhes a invisível fita que os prendem às almas que estrebucham no seu pensamento pelo desejo de liberdade, e só vendo os corpos é que conseguem alcançar a tranquilidade. O luto é isso mesmo, o corte do fio dos sentimentos que prende os vivos aos seus mortos. São inúmeros os casos em que tal situação não ocorreu, porque não se sabe se o amado está vivo ou morto, ou, neste último caso, onde pairará. Mas há quem deseje dificultar esse corte, como aconteceu com o caso da pesquisa de corpos de uma tripulação inglesa que, no regresso de um bombardeamento a unidades de guerra alemãs, foi abatido sobre o território inimigo. Houve uma testemunha que viu tombar o Lancaster. Agora, passados quase setenta anos, a testemunha ocular ajudou "caçador