Vejo-a
todos os anos. Uma rotina que a obrigatoriedade da lei impõe. Lembro-me de a
ter visto pela primeira vez há mais de dezasseis anos. Na altura contou-me a
história das suas filhas gémeas, iguais como duas gotas de água que ao nascer
sofreram destinos diferentes, uma ficou sã enquanto a segunda, por maldição do
destino, ficou com uma gravíssima paralisia cerebral. Duas gémeas transformadas
em dois seres diferentes, que o tempo se encarregou de comprovar. A primeira
vez que ouvi a história fiquei incomodado, o raio da profissão nunca conseguiu
nem consegue imunizar os meus sentimentos, provocando-me verdadeiras lacerações
da alma que nem em cicatrizes conseguem transformar-se, porque são chagas vivas
que a todo o momento gritam de dor e de incompreensão. Nunca vi a menina, mas
fui acompanhando-a através dos relatos da mãe, até que, há quase quatro anos
tive conhecimento do seu passamento. Avisaram-me um pouco antes da consulta. A
senhora entrou e vi o seu estado de alma, contou-me o sucedido, e eu só sei
falar nestas ocasiões estando calado. Registei este episódio na alma e num
pequeno texto a quem titulei “Uma lição de vida”. Publiquei-o. A mãe acabou por
o ler. Na consulta seguinte agradeceu-me emocionada o que tinha feito pela
filha. Eu que nunca a vi, apenas ouvi e escrevi. Guardou o meu texto, talvez
junto da foto. Hoje vi-a novamente. Sentou-se com o seu semblante de mulher
sofredora e de esperança. Pressenti algo, uma tristeza inexplicável.
Perguntei-lhe, sem demoras, por que é está tão triste, o que lhe aconteceu?
Olhou-me e disse: faz hoje quatro anos que a minha filha morreu. O dia estava
lindo como hoje, mas um pouco mais frio. Ficámos em silêncio por uns
momentos em respeito pela sua memória. Não chorou e eu também não.
Falámos como amigos que se veem todos os dias, mas na realidade apenas uns
minutos por ano. Que coincidência, não é senhor doutor? Eu, quando vinha para
aqui, só pensava se o senhor doutor estaria a dar consulta. Quando cheguei foi
a primeira coisa que perguntei. Falámos durante algum tempo, a consulta ficou
em terceiro ou em quarto lugar. Foi então que me disse, sabe, não sei onde para a
minha filha, o que eu sei, tenho a certeza absoluta, é que ela está muito
feliz. Uma senhora que já me tinha dado mais do que uma lição de vida, hoje deu-me
mais uma. Eu, que nunca vi a menina, continuo ligado a ela, na vida e na morte,
o único laço que me prende é saber que foi uma criança feliz e quem sabe se não
continuará a ser, não sei, sinceramente, não sei, mas a mãe diz que sim.
Um
beijinho para a Mariana.
«Falámos como amigos que se veem todos os dias, mas na realidade apenas uns minutos por ano.»
ResponderEliminarEsses, são os Amigos, aqueles que não se vendo, estão sempre presentes.
Um beijinho meu, para a Mariana e para a mãe que soube preencher-lhe a vida com a felicidade que a diferença lhe roubou à nascença.
Merecem, sem dúvida, Bartolmeu.
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