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Saudades do pão...

De manhã cedo, assim que ouvia a buzina da bicicleta a tocar insistentemente, abria de imediato a porta e via a máquina com duas largas anquinhas de verga, tapadas com um pano branco, estacionada junto ao muro. Quando o padeiro destapava os cestos, um cheirinho quente e saboroso a pão fresco invadia subitamente o terraço, perfumando o nevoeiro ou o fresco matinal. Pegava num papo-seco, estaladiço e meio oco. Corria para casa e barrava-o com manteiga, que se derretia deliciosamente em contacto com as paredes ainda quentes, seguido de sôfrega ingestão, desfrutando a saborosa gordura embrulhada na doce textura do trigo, sempre acompanhado do café fumegante de cevada, porque isso de beber leite causava-me enjoos. Ala que se faz tarde, mas mesmo assim ainda levava mais um para comer a meio da manhã na escola. Quando ia comê-lo já estava mole, meio esmagado pelas tropelias, e frio. Ao abrir a saca, os outros meninos olhavam para mim. Via que o cobiçavam. Perguntava se quer

Lenda do vinho

O período de férias é muito agradável porque permite um convívio mais íntimo com os netos. Não há pressas, fala-se mais facilmente, atende-se a pormenores, que de outra forma seriam soberanamente ignorados, e leva-nos a divagar e a criar histórias para o futuro. A neta mais velha, subitamente, durante o almoço, interpelou-me: - Vovô, sabes como é que apareceu o vinho? Olhei para a miúda e lembrei-me de uma velha lenda. Comecei a contá-la. Permanecendo em silêncio, enquanto comia a sopa, disse-lhe que o lendário rei persa, Jamshheed, gostava de comer uvas todo o ano. Para o efeito eram armazenadas em jarras, potes ou tonéis, enfim, num qualquer contentor da época. Um dia, as uvas retiradas de um desses potes estavam amargas, além da presença de um líquido com estranho aroma, que foi considerado como veneno. A jovem esposa, dada à tristeza e à depressão, resolveu aproveitar o tal líquido, classificado como veneno, para por fim à vida. E se assim pensou, melhor o fez. Ao consumir o lí

Inocentes

Gosto de ler um bom livro. Gosto de conhecer um novo autor. Gosto de me isolar e deixar levar na onda de uma deliciosa narrativa. Gosto de esquecer que existo ao embrenhar-me em páginas de dor, de alegria, de tristeza ou na intimidade de personagens criadas, reais, fictícias, não interessa, elas existem mesmo, seja na vida real, seja na imaginação ou no estranho purgatório da existência, com um pé neste mundo e a alma no outro. Gosto. Nem sempre consigo encontrar uma fonte de leitura que jorre desde a primeira à última página lágrimas de prazer ou gotas de sedução que, ao invés de matar a fome, sabe criar desejos e despertar a sede de novas emoções. Quando tal acontece sinto um efeito equivalente ao estado de semi embriaguez, fica-se consciente e livre para voar entre as nuvens da felicidade ou afundar sob o sol da inquietação. Foi o que aconteceu com um pequeno livro de um escritor espanhol, Ramón J. Sender, "Requiem por um camponês espanhol". Adquiri-o numa daquelas feira

“Arte ou necessidade” de enganar.

A espécie humana apresenta características próprias, sendo algumas particularmente interessantes, universais e tão frequentes que esbarramos nelas a toda a hora, em todos os locais e níveis sociais. Pretendo destacar uma delas que nos incomoda, que nos faz sentir pequenos, responsável às vezes por elevados prejuízos, sofrimento físico, morte de alma ou simplesmente por pequenos custos que com o tempo se esquecem; de qualquer modo deixam sempre qualquer coisa a moer por dentro, alertando-nos para que não caiamos novamente. Trata-se do engano. A capacidade de enganar está muito disseminada, a ponto de, em determinadas circunstâncias, chegar a ser considerada como normal, como uma forma de vida, havendo técnicas mais ou menos elaboradas para conseguir que as pessoas adquiram os serviços e os bens em causa. Neste caso basta ver a publicidade que passa na televisão, abusiva, distorcida, eticamente condenável, mas legal, em que vários agentes se "enfeixam"

Quebrar a confidencialidade

A medicina tem-se tornado cada vez mais defensiva, com implicações óbvias para todos, especialmente para os doentes, que vai desde um certo grau de "desumanização" a tratamentos "excessivos" passando pela sujeição a exames muitas vezes desnecessários.  A reforçar este comportamento tem contribuído algumas decisões judiciais. A última prende-se com a condenação de uma psiquiatra francesa por homicídio que foi cometido por um dos seus doentes. Como não reconheceu o "perigo público" do doente, que matou a avó, devido a facto de ter problemas mentais, a médica passou a ser a responsável.  Há anos o caso Tatiana Tarasoff criou um novo paradigma nestas áreas, a quebra da confidencialidade. Um estudante indiano matou uma jovem que era sua amiga, ao  interpretar mal a situação, julgou que a moça estava interessada nele devido a questões culturais. A rapariga afastou-se, o rapaz entrou em depressão, andou em tratamento e, segundo a versão dos pais, terá con

Acreditar ou fingir.

Há momentos da vida que são recordados com mais intensidade do que outros, não por serem mais graves ou mais intensos, apenas porque se associam a festividades que, pela sua natureza, acabam por os colocar no altar da injustiça, no cofre da indiferença e no cemitério da dor, obrigando a refletir sobre a incompreensão do erro da vida. Um erro monstruoso e sem sentido com o qual vivemos o nosso dia-a-dia. Nem mesmo as palavras de paz, os votos de felicidades, as mensagens estereotipadas e as inúmeras ceias são capazes de encher o bandulho da alma. Mesmo que sintam algum conforto gástrico ou mental promovidos por um bacalhau quente ou regados mais à-vontade com um vinho de melhor qualidade não conseguem esconder tudo o resto. É apenas uma forma de fingimento, porque serão muito poucos os que ainda acreditam na solidariedade, na esperança de melhores dias ou na vontade de transformar o mundo, e os que acreditam, ou fingem acreditar, andam bem recheados todo o ano. Os outros estão condenad

Quebra de confidencialidade

A medicina tem-se tornado cada vez mais defensiva, com implicações óbvias para todos, especialmente para os doentes, que vai desde um certo grau de "desumanização" a tratamentos "excessivos" passando pela sujeição a exames muitas vezes desnecessários. A reforçar este comportamento tem contribuído algumas decisões judiciais. A última prende-se com a condenação de uma psiquiatra francesa por homicídio que foi cometido por um dos seus doentes. Como não reconheceu o "perigo público" do doente, que matou a avó, devido a facto de ter problemas mentais, a médica passou a ser a responsável. Há anos o caso Tatiana Tarasoff criou um novo paradigma nestas áreas, a quebra da confidencialidade. Um estudante indiano matou uma jovem que era sua amiga, ao interpretar mal a situação, julgou que a moça estava interessada nele. A rapariga afastou-se, o rapaz entrou em depressão, andou em tratamento e, segundo a versão dos pais, terá confessado ao psicólogo