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Quebra de confidencialidade


A medicina tem-se tornado cada vez mais defensiva, com implicações óbvias para todos, especialmente para os doentes, que vai desde um certo grau de "desumanização" a tratamentos "excessivos" passando pela sujeição a exames muitas vezes desnecessários.
A reforçar este comportamento tem contribuído algumas decisões judiciais. A última prende-se com a condenação de uma psiquiatra francesa por homicídio que foi cometido por um dos seus doentes. Como não reconheceu o "perigo público" do doente, que matou a avó, devido a facto de ter problemas mentais, a médica passou a ser a responsável.
Há anos o caso Tatiana Tarasoff criou um novo paradigma nestas áreas, a quebra da confidencialidade. Um estudante indiano matou uma jovem que era sua amiga, ao interpretar mal a situação, julgou que a moça estava interessada nele. A rapariga afastou-se, o rapaz entrou em depressão, andou em tratamento e, segundo a versão dos pais, terá confessado ao psicólogo a intenção de a matar. O psicólogo informou a polícia que o deteve durante algum tempo, mas tiveram de o libertar por, aparentemente, estar na posse das suas capacidades mentais, embora tivessem sido alertados para o facto de poder ter momentos de lucidez e comportamento normal. Apesar de algumas peripécias, o psicólogo avisou que iria pedir o internamento compulsivo, mas as autoridades estavam convencidas de que o rapaz não tinha problemas de maior. O que é certo é que acabou por matar Tatiana sem que a família e a vítima tivessem sido avisadas do risco que corriam. Poddar, o assassino, foi julgado, condenado, houve apelação, libertaram-no e foi para a Índia, onde deve estar, se for vivo.
Este caso serviu de paradigma para justificar, judicialmente, a quebra de "confidencialidade eticamente justificada", quando uma terceira pessoa corra graves riscos.
Esta decisão não foi unânime. Houve quem defendesse que a defesa da vida é uma prioridade justificando a quebra da confidencialidade. No entanto, houve quem votasse contra alegando que a confidencialidade é um direito do doente que não poder ser posto em causa.
Reconheço que não é fácil resolver certos assuntos. Os médicos podem, em algumas circunstâncias, ficar entre a espada e a parede. Quebrar a confidencialidade, sim ou não? Na grande maioria dos casos, utilizando o bom senso e a experiência, é possível solucioná-los, o pior é quando somos confrontados como o caso da psiquiatra francesa. Como é que podemos ter a certeza de que o problema em questão pode provocar a morte de alguém? Como estabelecer a linha de "quebra de confidencialidade"? E se o médico não avisar, o que é que lhe pode acontecer? Ser acusado de um crime? Não poderão cair em exageros para se defenderem, provocando mais danos nos doentes? Mas são só os médicos que deverão ser condenados? E os juízes que "libertam" ou não tomam as medidas adequadas face a potenciais assassinos, aplicando medidas ligeiras as quais permitem a consumação posterior de crimes anunciados? O que é que lhes acontece? Nada. E no caso dos sacerdotes católicos que têm acesso a confissões de crimes ou a potenciais criminosos? O que é que lhes acontece? Nada.
Estas situações são preocupantes porque vão decerto agravar mais o distanciamento entre médicos e doentes e tornar mais "fria e distante" as relações na esfera clínica. Os médicos não "gozam" das regalias de outros profissionais protegidos pela própria lei ou por Deus!
Preocupante, demasiado, a meu ver.

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