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"Suavidade"...

O quadro cedo começou a desenhar-se, uma agradável frescura entrou repentinamente pela janela como se fosse um animal de estimação a lamber de alegria o dono. Olhei e não vi nada. Nem tinha que ver, mas sim sentir. Parou, para voltar mais algumas vezes. Ria-se e bocejava ao mesmo tempo. É o que faz ter a janela aberta, entra quem pode entrar, e eu deixei. O tempo, o tempo do sol, das nuvens e da cálida manhã corria e brincava como se estivesse no adro de uma igreja desafiando os rituais. Livre, o tempo do sol, das nuvens e da cálida manhã fazia das suas, cantarolava e, suavemente, começou a seduzir-me, como se fosse preciso chamar-me a atenção. Fiz de conta que sim, que estava a ser seduzido, nada melhor do que contentar o tempo do sol, das nuvens e da cálida manhã.  À tarde, o tempo do sol e das nuvens, cansado, espraiou-se languidamente em pensamentos, leituras e em sonhos. Viu-me e quis mostrar novamente a sua arte de sedução. Eu fingi que sim, que estava a ser seduzido por ele,

"Imitar"...

Imitar é um verbo que me faz lembrar os macacos. Não sei se eles se comportam como dizem, "macacos de imitação". Não sei, não. O que vejo é o fenómeno de imitação a disparar a torto e a direito. Lembram-se de criar um penteado novo, tipo crista de galo, ou a querer lembrar o cabelo "penteado" pelo sono, e "toda" a gente passa a usá-lo. Começam a ver tatuagens desenhadas nos corpos, para, sem qualquer motivo, a não ser a novidade, começarem a usá-las por tudo o que é sítio, visível e não visível. Há quem se lembre de pintar as unhas contra o tradicional e sensual vermelho, passando a usar cores mortas, feias, a lembrar cianosados em estado pré terminal ou a quererem copiar as unhas de bruxas diabólicas, e vai daí a epidemia começa a alastrar-se. Há quem se lembre, também, de aprisionar uma ribeira ou um rio com poucas forças no verão, criando esverdeados e nauseabundos espelhos de água, para dar a expectativa de terem muita água, e inclusive colocando rep

"Passamento"...

Começa a ser muito frequente receber notícias de passamentos. É natural, penso, conheço muitas pessoas e já vivi alguns anos, logo, tenho que os registar, algumas vezes com naturalidade, outras com certo incómodo, por vezes com sentida tristeza e até mesmo com sentimento de perda. Começa a ser frequente receber notícias de passamentos. São tantos que às vezes chego a confundi-los com os meus pensamentos. São tantos que acabo por mergulhar em pensamentos construídos à custa das suas vidas e confissões. Quem diria que muitos dos meus pensamentos são frutos de vivências, do convívio, das confissões e do conhecimento de muitas histórias que a morte apaga num dia qualquer, indiferente a tudo e a todos. Desaparecem uns atrás de outros e eu acabo por ficar com algumas das suas recordações. Recordações que nunca partilharam com mais ninguém. Fui o único espetador de muitas representações singulares, em que a tristeza, a angústia, a amargura, o mistério, a volúpia, o ato reprovável aos olhos

"Triste país"...

Uma tarde livre é algo pouco habitual. Quis o acaso, e a época, que hoje tivesse possibilidade de fazer algo de diferente. Fui até à Figueira da Foz. É raro ir até aquelas bandas, que, noutras épocas, constituía um ponto de referência estival de máxima importância. O tempo passou e quando o tempo passa muda tudo, sobretudo os velhos hábitos. Ao chegar à cidade, a mente, liberta de preocupações, deixou-se inundar por inúmeras recordações que se sobrepunham de forma intemporal. O compasso de espera para uma brevíssima reunião permitiu verificar o apagamento de velhos pontos de referência. Triste ver esse apagamento. Dói. Mas também dói o vazio humano que se prolongava pelas ruas e até pela praia. Um vazio humano, um vazio de sentimentos e um vazio de esperanças. Dói ver a decadência a desfilar perante os olhares de quem se entretém, durante uma bela tarde, a analisar os passantes e o ambiente. Perguntei o que se passava, como se fosse muito complicado encontrar as explicações. Apenas q

"Sombra na escuridão"...

Há quem tenha medo da escuridão, mas há quem a procure para esconder as suas lágrimas. Há quem nasça na escuridão e há os que ao longo da vida são empurrados para esse estranho lugar. Viver na escuridão é triste, é viver em silêncio e sem calor. Até a morte precisa da escuridão para sobreviver na memória dos vivos. A escuridão só deixa de assustar quando permite desenhar as sombras da esperança. Ver sombras na escuridão é sinal de regresso à vida. A verdadeira escuridão é aquela que conhece o verdadeiro significado das sombras...

"Tarde"...

A tarde está cheia de vazios, sem sabores, sem cheiros, sem nada que me convença que valha a pena ver, sentir e desejar. Tarde sem interesse, mergulhada em angústia, desprovida de sentido e de vontade de viver. Ouve-se apenas barulhos, de serras, de alguns automóveis e pouco mais. Ruídos que atropelam o silêncio. Aguardo que o tempo passe. Apenas boceja. Olha para mim como se eu fosse o culpado. Pobre tempo que não tem mais nada do que fazer do que estar a aborrecer-me. Embirrou comigo, como se tivesse culpa de ter nascido numa tarde sem interesse. Tento explicar-lhe que estou farto de o sentir. Ri-se, goza comigo, e boceja mais uma vez, uma autêntica provocação sem sentido. Quero fugir-lhe, mas não me larga. Vigia-me como se fosse um carcereiro maldoso que goza com a angústia de um pobre prisioneiro. Viro-lhe as costas, finjo que não ouço os ruídos da rua e tapo os ouvidos com auriculares que debitam música suave ao acaso. E o tempo boceja, sempre a bocejar, como se tivesse necessid

"Lembrança"...

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Lembrar é viver, é degustar certos momentos da vida que deixaram as suas marcas, sem as quais não seríamos o que somos. Pequenas lembranças, mas suficientes para definir uma vida. Podemos deixar de entrar em contacto com a fonte que contribuiu para a nossa formação, a nossa vivência e quem sabe se para o nosso sucesso. Não interessa pesar essas lembranças, é suficiente dar-lhes a devida importância. Recordo o seu auxílio, as suas aulas personalizadas, a ida a casa e a doçura do trato. Soube ensinar com delicadeza para quem estava fragilizado. Aprendia facilmente sob o efeito de um doce sorriso e uma ternura maternal. Com o tempo, as melhoras do corpo e do espírito permitiam-me acompanhá-la a casa, como se a escuridão da época fosse algo de atormentador. Não era. Dava-lhe o braço e sentia que era um herói, alguém que passava de protegido a protetor. Gostava desta cumplicidade. A distância entre as nossas casas não era por aí além, umas quatro centenas de metros que se faziam facilment