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Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2012

Síndrome sem nome...

Em medicina é relativamente comum, na construção de novas entidades nosológicas, designá-las com o nome de quem as descobriu ou, então, relacioná-las com algumas descrições decorrentes de determinados fenómenos, locais onde foram identificadas pela primeira vez e até mesmo fazendo recurso à arte, à mitologia e à literatura. No fundo trata-se de síndromes, conjunto de sinais e de sintomas que conferem personalidade médica sem a qual não é possível tratar ou prevenir. Algumas dessas síndromes traduzem acontecimentos interessantes, previamente relatados, aos quais os descobridores foram buscar o nome. Neste momento surgem algumas na minha memória, caso do cocheiro "mister Pickwick", personagem de uma obra de Dickens, gordo, que adormecia em qualquer lugar e que traduz a relação entre a apneia do sono e a obesidade; outra, a síndrome de Stendhal, tão bem descrita na sua obra "Nápoles e Florença: uma viagem de Milão a Reggio" em que o vislumbre da imensa beleza florentin

Paciência, Wilberforce!

Não me recordo, apesar de fazer muitos esforços, quando é que comecei a pronunciar certas palavras, provavelmente por as dizer sem saber o que dizia. Balbuciamos, soletramos, interagimos através de palavras, fonemas e monossílabos sem saber o significado dos mesmos. Depois, com o tempo, acabamos por preencher o oco dessas palavras com algum sentido ou significado, um recheio grosseiro, e muito limitado, que, periodicamente, é substituído por conceitos mais elaborados e consistentes. Não me lembro quando é que comecei a utilizar a palavra Deus, mas sou capaz de precisar alguns conceitos a esse propósito. Diziam-me que estava no céu. Olhava para o céu e não percebia como é que alguém podia estar lá em cima. Metia-me muita confusão, mas uma estampa, que estava na sala, ajudou-me a resolver o assunto. Uma imagem de um homem barbudo sentado sem usar banco, em cima das nuvens, dava a impressão de que estava para lá do teto azul. Foi então que entendi o que era o céu e onde estava Deus. O azu

Post it ("06568")

Manhã de inverno, muito fria, iluminada por um sol basófias, demasiada luminosidade e pouco calor. Ligo o rádio, notícias do costume, exceto o leilão do molde dos dentes de Elvis Presley, cuja base de licitação é de doze mil dólares. Estou com curiosidade em saber até quanto irá subir. Licitadores não irão faltar e o desejado artefacto irá terminar numa sala qualquer tornando-se no ponto central de atenção e de orgulho do dono. O que leva as pessoas a adquirirem determinados objetos? Falo daqueles que não são propriamente exemplos de obras de arte, caso do molde em questão, do lenho de Cristo que, a estas horas, deverá corresponder ao abate de uma floresta, ao cabelo de Napoleão, às cuecas da rainha Vitória, aos dentes de Santo António, às inúmeras relíquias de santos e santas que andam por aí e a tantas outras coisas que dispenso de enumerar. Estes objetos em si não valem grande coisa, adquirem valor porque materializam ideias, conceções, desejos, transferências, vontades de incorpora

"Duas rosas vermelhas"

Acabei, ao fim de algum tempo, por saber que teve um passado fermentado pela luxúria, recheado pela aventura e afogado no álcool. Acabou tudo, os primeiros pelo efeito do tempo e o último por vontade própria. Depois começou a perder peso de uma forma assustadora, muitos quilos, tantos, que o homem, já de si perturbado, não sei se pela vivência ou devido à sua estrutura, ficou ainda muito pior. E eu comecei a ficar igualmente. Pus-me a vasculhar pelos meandros do seu corpo para saber onde estaria o gato, mas, por mais voltas que desse, não encontrava nada. Pus a hipótese de que a falta das calorias do tinto seria o responsável, aliada a qualquer perturbação de cariz metabólico não detetável ou a alguma depressão mascarada. Como continuava a emagrecer, joguei, em doses baixas, com o efeito secundário de um medicamento, e, para minha satisfação, deixou de perder peso, começando, lentamente, a engordar. Semana após semana era evidente a alegria do senhor. Eu é que comecei a fi
T enho uma propens ão para andar em velharias, mas não em antiquários, um hábito com muitos anos, com interrupções mais ou menos longas, dependendo da disponibilidade e sobretudo da existência ou não de comerciantes de coisas velhas. Gosto de chafurdar na poeira, lutar contra algumas teias de aranha e sujeitar-me a ataques de espirros, por vezes compensados com a aquisição de algo interessante. Não sou propriamente um indivíduo que goste de regatear, mas, neste tipo de negócio, paradoxalmente, sabe-me bem. Talvez tenha alguma razão de ser. Como é que se dá valor a coisas "sem utilidade"? Algum valor intrínseco, obviamente, ser ou não raro e sobretudo se é cobiçado ou não pelo comprador. Mas existe outro motivo, fazer conversa com o vendedor, criar empatia, estabelecer alguma relação, ou seja, fazer negócio à maneira dos judeus. Conversar, conversar e depois no fim negociar. É muito mais fácil. H á cerca de dois anos descobri um velhustro. Na altura com

"Escadaria de almas"

S á bado. Manh ã de sol de uma primavera ser ô dia. Movimento pouco usual na pra ç a. Cavaletes, pintores, batas sujas, cada um para seu lado. Depressa apreendi estar perante uma sess ã o de pintura ao ar livre. H á mais gente? Sim. Andam dispersos por a í . Vasculhei alguns quadros em que pinturas embrion á rias denunciavam os novos seres, para o efeito bastava projet á -las nos espa ç os envolventes. Quando terminam? L á para o fim da tarde est ã o prontos para serem expostos. N ã o foi dif í cil adivinhar que cada artista tinha escolhido as melhores e, tamb é m, as mais previs í veis paisagens. À hora aprazada fui ver o resultado. Alguns mais elaborados, outros menos, mas de qualquer modo demonstrativos de um esfor ç o art í stico. Houve entretanto um quadro que me atraiu de imediato, pela t é cnica, pelo calor e pela forma de abordar a paisagem envolvente. N ã o sendo da terra, era a primeira vez que a visitava, conseguiu fugir ao apelo dos espa ç os mais

Cristo "pescador de almas"

Há anos, no regresso de uns curtos dias de férias a Castela e Leão, guinei inesperadamente quando li a tabuleta a indicar Sabugal. Sempre desejei conhecer aquela vila. Como nunca se tinha atravessado nas minhas deslocações profissionais, pensei, é hoje. Senti que lhe tinha de prestar vassalagem. Não me arrependi, nem poderia, perante a carga histórica que lhe está associada. Efetuei um pequeno périplo, almocei e fui até ao castelo. O dia escaldava. Cheguei a pensar que o diabo, se passasse por aquelas bandas, deveria sentir-se bastante incomodado. A beleza do local aliada ao silêncio do auge do verão empurraram-me para tempos remotos, provocando-me uma sensação agradável. Certos ambientes ajudam-me a viajar no tempo. Viagens que não desgosto de fazer. Lembrei-me do poeta, aventureiro, herói e brigão Brás Garcia de Mascarenhas, autor do "Viriato Trágico", que ali foi aprisionado como traidor à pátria. Uma vida fascinante, começada em Coimbra quando feriu gr

"O senhor doutor toma medicamentos?"

Entrou no consultório com ar displicente. Via-se que vinha um pouco contrafeito; se não fosse obrigado não punha os pés para aturar estas coisas. Confessou que tinha tido algumas crises desde a última vez, mas tinha deixado de tomar a medicação. A conselho do seu médico assistente, perguntei um pouco ironicamente. Não, fui eu que decidi. E qual a razão? Não gosto e não me apetece tomar drogas. Mas elas são importantes e muito úteis e se não corrigir os seus problemas pode vir a ter complicações graves. A conversa continuou, mas depressa tive de lhe dizer que cada um escolhe o que achar mais conveniente, embora me sentisse desconfortável com tamanha atitude, que quase diria ser matéria de "fé", ao não acreditar e não gostar de medicamentos. E no que toca a "matéria de fé", entendo não me imiscuir, pelo que dei por terminada a conversa, embora tenha continuado com o exame. No final disse-lhe quais os problemas que tinha detetado. Vi que ficou um pouco incomodado e per

Dickens

Manhã cedo, muito cedo. Noite passada à pressa, mesmo assim deu para descansar um pouco, pelo menos fiquei com essa sensação, na realidade as coisas deverão ser muito diferentes, mas não interessa. A realidade é uma coisa e a perceção da mesma é outra, no final é esta última que conta. Vivemos à custa de sensações ou de esperanças que fogem da realidade como o diabo da cruz. O rádio transmite a notícia dos duzentos anos do nascimento de Charles Dickens. Li algumas das suas obras em pequeno e vi alguns filmes produzidos à custa do seu fervor literário, aprendi a correlacionar as más condições de vida com a saúde das pessoas, nomeadamente as crianças, fome e raquitismo, uma praga da época agravada pela falta de sol, uma constante daquelas latitudes a que não terá sido alheio um qualquer arrefecimento climático da altura. Aprendi muito da maldade e intolerância humanas, inconcebíveis para um jovem crente na bondade e sinceridade dos adultos. Por vezes ponho-me a pensar se a minha des

Íris

Nomes. É preciso dar um nome a tudo e a todos, sem nomes caímos no anonimato e com nomes morremos, geralmente, como anónimos. Afinal para que servem os nomes? Para criar a ilusão de que existimos, sem eles não seria possível viver ou fingir que se vive. Olho para lado e vejo sede de nomes, todos têm um, ou mais do que um, mas para quê? Para escrever numa lápide, que o tempo se encarregará de apagar, gozando e desprezando as almas que acreditaram que viver valia alguma coisa. E se não for uma lápide, pode ser uma folha de papel, uma carta de amor ou uma crosta de uma árvore, todos desejosos de eliminar o que quer que seja, e conseguem-no. Os nomes foram criados para um destino fatal, serem esquecidos, e mesmo os que teimam em perpetuar-se não perturbam os seus donos, porque estes esqueceram-se de que um dia existiram. Não há nada mais gratificante do que o desaparecimento de um nome. Quando isso acontece é como se nunca tivesse existido, e quem não existe saboreia uma felicidade impossí

Chorão

Está frio, adoro o frio, o frio provoca-me e eu não me importo. Ofereço-lhe apenas a face, o resto não, não tem nada a ver com isso. As suas navalhadas despertam um certo gozo debaixo dos agasalhos. Um confronto justo, pelo menos não lhe viro a cara. Caminho na noite. Ao aproximar-me da pequena ribeira começo a sentir a sua humidade, está sempre triste, a chorar, seja inverno ou verão, não sei porque razão um curso de água tão vulgar, tirando os dias chuvosos, consegue furar a pele injetando nos ossos a humidade mais estranha que já senti até hoje. Algum desgosto de amor que ainda perdura nos dias de hoje. Não a recrimino, paro e olho-a com ternura, sinto um certo alento, quero acreditar que as suas entranhas aqueçam um pouco com a minha presença. Estou-lhe grato por fazer parte do meu passado. Ofereceu-me horas de prazer; recordo os seus estranhos cantares, às vezes chegava a gritar de dor, assustava-me, mas os doces murmúrios das noites de verão acalmavam qualquer angústia ou tristez

Uma questão de tomates!

Frequento com uma certa displicência as redes sociais. Apesar de alguns perigos e dissabores tenho de reconhecer, igualmente, algumas vantagens. Acabo por saber muito sobre a personalidade de conhecidos e desconhecidos, aprendo imenso com os comentários e análises críticas dos bem intencionados e surpreendo-me sempre com o comportamento menos correto e, até, por vezes, ofensivo de outros. No fundo consegue-se uma interação quase que instantânea com várias pessoas representantes das diferentes tendências e formas de ser. No entanto, não posso deixar de dizer que fico muito preocupado com algumas ideias. Uma das áreas mais apetecíveis tem a ver com a atividade política. Queixas e críticas pertinentes não me causam qualquer prurido, pelo contrário, são sempre bem-vindas, porque podem contribuir para a melhoria de comportamentos que deveriam ser escrupulosos e transparentes. O pior é quando atacam de forma genérica, englobando tudo e todos no mesmo saco. Mais grave ainda é quando vislumbro

Diversidade

Em termos biológicos quanto maior for a diversidade de uma espécie maior é a garantia da sua perpetuação. Uma regra observada por tudo quanto é sítio; regra a que os seres humanos também estão sujeitos. Em termos culturais e ideológicos, características intrínsecas à nossa espécie, também somos muito diferentes uns dos outros, e ainda bem, porque, teoricamente, do confronto das ideias e rumos a propor podem surgir novos paradigmas e serem encontradas soluções para muitos dos nossos males, isto se o confronto se realizar com base em certos princípios, nomeadamente respeito e tolerância. Não é o que vislumbro, o que não é de admirar, basta para o efeito olhar para o passado e verificar que os fenómenos de intolerância e de agressividade são das mais poderosas constantes da humanidade, a fazer inveja a outras que são utilizadas, à falta de melhor, para explicar o funcionamento do universo. Olhamos para as notícias e o que é que vemos? Decisões tomadas num determinado sentido começam, ao f