Está frio, adoro o frio, o frio provoca-me e eu não me importo. Ofereço-lhe apenas a face, o resto não, não tem nada a ver com isso. As suas navalhadas despertam um certo gozo debaixo dos agasalhos. Um confronto justo, pelo menos não lhe viro a cara. Caminho na noite. Ao aproximar-me da pequena ribeira começo a sentir a sua humidade, está sempre triste, a chorar, seja inverno ou verão, não sei porque razão um curso de água tão vulgar, tirando os dias chuvosos, consegue furar a pele injetando nos ossos a humidade mais estranha que já senti até hoje. Algum desgosto de amor que ainda perdura nos dias de hoje. Não a recrimino, paro e olho-a com ternura, sinto um certo alento, quero acreditar que as suas entranhas aqueçam um pouco com a minha presença. Estou-lhe grato por fazer parte do meu passado. Ofereceu-me horas de prazer; recordo os seus estranhos cantares, às vezes chegava a gritar de dor, assustava-me, mas os doces murmúrios das noites de verão acalmavam qualquer angústia ou tristeza, sei que queria falar, ainda hoje tenta, mas não consegue fazer-se entender. Deixava que brincasse nas suas águas límpidas com os meus barcos improvisados. Oferecia-me odores inconfundíveis de perfumes naturais que ia selecionando ao longo do seu trajeto pelos campos, e permitia que acariciasse minúsculos peixinhos que corriam como uns tolinhos, mas cheios de felicidade, de um lado para o outro. Durante o curto momento em que parei sobre a ribeira correram no meu pensamento, com uma fluidez hídrica, inúmeros episódios criados em seu redor. Olho em redor e encontro o belo chorão, acabado de ser tosquiado, as suas folhas avermelhadas dão-lhe um ar de quarentona acabada de sair do cabeleireiro. Mais umas semanas e irá rejuvenescer com frondosos, longos, e desgrenhados cabelos a lembrar uma adolescente rebelde, para o efeito a água da ribeira dá-lhe o que necessita, as lágrimas da sua longa e inexplicável tristeza. A alegria de uns alimenta-se da fria tristeza de outros. Um pouco de calor numa noite fria aquece qualquer um, até mesmo a ribeira.
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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