Manhã de inverno, muito fria, iluminada por um sol basófias, demasiada luminosidade e pouco calor. Ligo o rádio, notícias do costume, exceto o leilão do molde dos dentes de Elvis Presley, cuja base de licitação é de doze mil dólares. Estou com curiosidade em saber até quanto irá subir. Licitadores não irão faltar e o desejado artefacto irá terminar numa sala qualquer tornando-se no ponto central de atenção e de orgulho do dono.
O que leva as pessoas a adquirirem determinados objetos? Falo daqueles que não são propriamente exemplos de obras de arte, caso do molde em questão, do lenho de Cristo que, a estas horas, deverá corresponder ao abate de uma floresta, ao cabelo de Napoleão, às cuecas da rainha Vitória, aos dentes de Santo António, às inúmeras relíquias de santos e santas que andam por aí e a tantas outras coisas que dispenso de enumerar. Estes objetos em si não valem grande coisa, adquirem valor porque materializam ideias, conceções, desejos, transferências, vontades de incorporar em si a importância absoluta ou relativa dos indivíduos ou proprietários. Parece que a memória de certos factos ou valores necessita de um substrato qualquer que desperte emoções ou recordações. O comprador do molde ainda poderá fazer dinheiro, cobrando aos adoradores de Elvis uma pequena quantia para verem o que esteve mergulhado na boca de um grande homem da música. Já estou a imaginar os ahs de espanto e de admiração.
Olhando para o que me rodeia, acabo por verificar que não sou muito diferente dos outros, também tenho algumas lembranças, não propriamente de interesse coletivo e "importantes" como as que acabei de referir, mas mais comezinhas, que me obrigam a refletir sobre o passado e sobre alguns acontecimentos, princípios ou valores. Pondo de parte as recordações familiares que acabarão por perder significado ou "valor" ao fim de algum tempo ou gerações, alguns artefactos desprovidos de efeito estético que andam lá por casa já me obrigaram a viajar no passado e a analisar determinados acontecimentos. No fundo transmitem ou despertam emoções e qualquer um de nós alimenta-se mais ou menos gulosamente delas.
Acabo de sentar-me na mesa de um café a que me habituei ir desde há algum tempo na minha deslocação semanal. Esta mesa seria naturalmente ocupada por uma figura típica que acabei por conhecer, um cauteleiro de idade avançada que fazia do estabelecimento o seu local de trabalho, fosse verão ou inverno. No verão estaria lá fora debaixo da palmeira a dormitar a sua sesta, no inverno resguardava-se do frio no interior. Comecei por estudá-lo, não sob o ponto de vista clínico, embora denotasse claudicação na marcha, mas, sobretudo, pela forma como se exprimia e comentava certos assuntos. Um dia atrevi-me a comprar-lhe uma cautela, eu, que por hábito não sou dado a jogos. O meu objetivo não estaria em ganhar qualquer prémio, mas sim em granjear a sua confiança para umas boas conversas, o homem era um filósofo de rua e eu queria aprender mais. Não é que logo à primeira ganhei um pequeno prémio? Setenta e cinco euros! Fiquei perplexo, pela primeira vez na vida ganhei qualquer coisa ao jogo, mas é tão raro jogar, pensei. Na semana seguinte, à hora do almoço entreguei-lhe a cautela. Agora só me falta mais uma. O indivíduo tinha tudo sob controle. Troquei a cautela por uma série delas até esgotar o "prémio". Nas semanas seguintes, graças a terminações e a minúsculos prémios ia trocando por outras ao mesmo tempo que começámos a sentar à mesma mesa. Se fosse o primeiro a chegar ao escritório era ele que se sentava na minha mesa, caso contrário era eu. Depressa verifiquei que a sua sabedoria extravasava o comum, é natural para quem trabalha na rua e é perspicaz. Críticas e análises judiciosas à situação, sentenças doutorais, e ainda por cima vindo de quem teve de abandonar a escola primária quando andava na terceira classe, para ganhar dinheiro a fim de comprar dois papos secos por dia, que era o que comia. Não sabia como se chamava nem tão pouco o senhor sabia o meu nome e o que é que eu fazia, mas gostava de conversar comigo. Da última troca de cautelas resultou que a única ficasse em branco. Ao fim deste tempo acabou por acontecer. Pensei, na próxima semana já não troco nada, tenho de voltar ao princípio e comprar-lhe outra, ele disse-me que um dia talvez me desse a taluda. Ri-me, claro, porque não confio no jogo, mas sempre era um pretexto para uma boa conversa e aprender qualquer coisa, porque aprende-se, e muito, com este tipo de pessoas.
No domingo, ao chegar a casa, vejo no jornal uma notícia sobre o falecimento de uma pessoa na cidade vizinha, através da fotografia vi que era o cauteleiro. Fiquei a saber o seu nome e que tinha falecido de morte súbita durante a madrugada na pensão onde vivia. Agora, na mesa onde estou a acabar de escrever este texto, que era a sua secretária, olho para o conjunto de cautelas que não foram premiadas, sobretudo para a última, última em todos os sentidos. Não deitei nenhuma fora. Guardei-as todas e vou continuar a guardá-las, porque me fazem despertar emoções, e eu preciso delas para sobreviver. Não são tão valiosas e importantes como o molde dos dentes de Elvis, mas são, também, um molde, um molde de vida e de pensar de alguém que tinha muito para ensinar. Um post it da existência, "06568".
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