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Maria J.

Sinto uma estranha e preocupante tristeza a inundar de cinzento a atmosfera da vida. Por cada dia que passa sinto o crescer de uma angústia que atinge praticamente qualquer um. Desespero, depressão, desemprego, desconfiança, dor e desilusão. Olho para os jornais e leio que a confusão está instalada em toda parte, no governo, na economia, na banca, na indústria, nos serviços, na saúde e até nalguns refúgios da alma, como é o caso da religião. Cada um dá importância aquilo que lhe mais toca de perto, é natural, é humano, é perfeitamente compreensível. Mesmo os que se sentem um pouco mais desprendidos e almofadados sabem que a crise também lhes toca, a crise de falta de esperança e de valores. Não tarda, assistiremos ao descambar da ordem social, não tarda, iremos ver confusões que há pouco tempo seriam impensáveis.
Choca? Sim, claro, quando o nosso futuro ou o dos nossos fica comprometido começamos a sentir a angústia a lamber-nos o corpo e o desespero a corroer a alma. No entanto, sei que tudo isto irá passar, não sei se é uma questão de tempo ou de vontade, talvez sejam as duas. O que eu queria mesmo era ver a esperança estampada nos rostos dos mais novos.
A crise social, económica e financeira há de encontrar o seu fim, fim que constitui o momento do nascimento uma nova vida e ordem social. O renascimento irá ocorrer, uma deliciosa fatalidade que tarda, mas que podemos acelerar e intensificar com a nossa dedicação e trabalho.
Mas há coisas na vida que não renascem, morrem e matam.
No final da manhã vi o último trabalhador, um jovem angustiado e ar macilento. Fixei a sua imagem, porque, aquando da minha palestra matinal ao grupo, revelou muita atenção. À pergunta sacramental, se andava bem de saúde, respondeu, de imediato, que andava a fazer medicação. "Tenho que a fazer. O meu psiquiatra disse que tinha de ser. Não tinha outra hipótese". À medida que ia dando explicações, sem dizer o que tinha, movia-se com algum desconforto e ansiedade na cadeira. Estava à espera que lhe perguntasse o que é  que tinha acontecido. Senti que deveria ser algo de grave. Comecei a ficar, também, ansioso, porque previ uma resposta cheia de dor à pergunta que lhe iria formular . Preparei-me para o embate. - Posso saber o que é que lhe aconteceu? Suspirou durante um quarto de segundo e respondeu, baixinho: - Perdi um filho há quatro meses. Uma sensação de gelo invadiu-me por completo. Senti a sua dor e a necessidade de conversar. Olhei-o e perguntei-lhe: - Quer falar sobre o seu drama? Em silêncio, retira um pequeno e múltiplo desdobrável com fotos de uma criança do interior do casaco e coloca-me nas mãos. Cada página tinha uma foto e por debaixo frases de amor, de lembranças. Folheei-o sem dizer nada. Uma criança linda, com cabelo, sem cabelo, com bicicleta, sem bicicleta, até que a última representava uma criança de cabelo comprido de cor de mel. - Uma menina? - Sim, morreu com nove anos, essa foto foi tirada três dias antes de morrer. Seis anos, senhor doutor, seis anos a lutar contra um maldito tumor, andei por todos os lugares, Inglaterra, Estados Unidos, e afinal não era necessário, os nossos fazem do melhor que há no mundo, mas não puderam salvá-la. Um tumor raro. Deixei-o falar, é a única coisa que sei fazer nestas ocasiões. Falou o tempo que quis, falou o tempo que necessitou para abrandar a sua dor. -Tenho outro filho, mais velho, tem quinze anos, e sofreu, também, muito, mas parece que está a querer ultrapassar as coisas. Sabe, senhor doutor, estou a pensar em adotar uma menina. Preciso imenso de ocupar um espaço que me dói tanto. Agora espero que a minha mulher aceite, estou convicto de que sim. Perguntei-lhe o que é que ela fazia, professora, mas agora dedicou-se ao voluntariado. - O senhor doutor sabe que todos os dias aparecem crianças com leucemias e outros tumores? Eu perguntava aos seus colegas as razões para estes fenómenos, mas nem eles sabem muito bem. A conversa continuou ao sabor da dor e da procura de algum lenitivo. Ao sair confidenciou-me que nunca mais iria esquecer a minha palestra e agradeceu-me. Perplexo, não lhe perguntei as razões, nem podia, limitei-me a puxar da memória. Não foram, decerto, os conceitos técnicos, científicos ou filosóficos, talvez tenham sido simples conceitos, banalidades, verdadeiros memes, capazes de ajudar a mudar a forma de ser e de estar, contribuindo para a mudança, mudança que está ao alcance de qualquer um.
Fiquei com um estranho amargo de boca. A força da dor pela perda de um filho consegue sobrepor-se a qualquer crise ou sofrimento. Perante mais um caso, história de sofrimento atroz, sou obrigado a partilhá-la. Não consigo calar-me, não consigo compreender e não consigo aceitar estes casos, apenas sei que irei recordar mais uma criança que nunca conheci, neste caso a Maria J....

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