O quadro

O tempo livre ao fim da manhã empurrou-me à descoberta de algo que deveria estar à minha espera. Não cumpri o habitual e emergi numa velha rua onde em tempos vi alguns quadros. Não é que seja uma referência do que quer que seja. O que eu senti foi um impulso difícil de descrever. Parei em frente da montra e reparei no vazio do local e no olhar distante de uma rapariga que há muito não deveria fazer negócio por aí além. Molduras, estampas, quadros sem arte e sem pretensão a esse estatuto. No chão, sem moldura, um quadro impressionista, cheio de cor e de alma, gritou à minha sensibilidade. Destoava naquele ambiente, e muito. Passei em frente, mas passados alguns instantes voltei para o ver. Belo, sem dúvida. Perturbou-me. Entrei e perguntei se estava à venda. Perguntei, porque uma obra de arte daquele nível destoava no meio de uma bagunçada sem jeito e sem interesse. – Está. – Qual o preço? Um valor não muito exagerado, mas mesmo assim havia algo que não estava a entender bem. Numa casa de molduras, estava despido. Ainda bem, pensei, porque assim a sua beleza salientava-se ainda mais. Explicou-me que o quadro estava ali há muito tempo. A pessoa quis uma moldura adequada e nunca mais levantou o quadro. O tempo foi passando e um dia alguém quis a moldura. Tiraram-lha. Ficou despido. A moça, como a querer justificar a venda, argumentou que o estabelecimento não era propriamente um depósito, logo justificava-se a venda do quadro. Fiquei incomodado com a explicação. Mesmo assim, e contra o que é meu hábito, perguntei se era o preço final. – Não sei. Vou telefonar à minha mãe. Tentou, mas não conseguiu. Pediu-me o contacto. Dei-lho. Fui à minha vida, vendo o sol a espraiar-se nas ruas e praças. Escondi-me durante breves instantes numa bela igreja onde saboreei deliciosas obras de arte sacra. Entretanto, o telemóvel tocou e pensei que devia ser a moça. Não, era a mãe, que me explicou que a menina, que eu sabia ser a filha, se tinha enganado, o preço era muito superior, mas como disse aquele valor, então ficava pelo preço que me tinha indicado. A voz, o timbre e a forma como discorreu incomodaram-me. Senti uma espécie de aviso. – Cuidado. Agradeci a gentileza, dando a conhecer de que ficaríamos por ali. No entanto, a força da beleza do quadro continuava a martelar-me a ponto de, sem saber a razão, ter ido novamente à loja a fim de o adquirir. A mãe estava presente. Falei com ela. Não senti qualquer empatia. Pelo contrário, fui invadido por uma profunda aversão. Mesmo assim o quadro atraía-me. Peguei nele e entreguei o cartão para efetuar o pagamento. Recusou. Disse-me que não tinha multibanco, que fosse ao fim da rua levantar a quantia. Não gostei da forma como se expressou. O seu olhar perturbava-me sobremaneira, inclusive a forma como falava do quadro e da apetência que já tinha despertado em muitas pessoas. Saí, mas depois lembrei-me de efetuar uma transferência bancária. Regressei à loja e propus-lhe este meio de pagamento. Recusou liminarmente dizendo que não aceitava transferências bancárias. Aquele sorriso incomodou-me ainda mais. Desci a rua para levantar a quantia. À medida que calcorreava a distância, comecei a sentir dúvidas e receios. Sentimentos desconfortáveis iam-me invadindo. Quando cheguei à caixa multibanco fiquei indeciso. Introduzi o  cartão, retirei a quantia e depois de olhar para as notas fiquei com a sensação de que não deveria adquirir o quadro. Porquê? Pela quantia em causa? Não. Não consigo explicar. Talvez houvesse algo de perturbador naquela bela obra de arte que me obrigasse a fugir dela. Nunca me tinha acontecido nada semelhante na minha vida. Depois, pensei, não basta comprar o que se gosta ou o que é belo, é preciso que o ambiente da aquisição seja também tranquilo, doce e confortável, coisas que estavam longe de acontecer. E foi assim que perdi a oportunidade de adquirir uma excelente obra de arte. 
Não estou arrependido. O quadro talvez. É pena. Sim, tenho imensa pena.

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