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Trapaceiro profissional

Dia da mãe. Para poder chegar a tempo ao hospital, lembrei-me de ir pelo IP3 em vez do habitual trajeto ao longo do Mondego, por Penacova. Uma asneira das grandes, porque me tinha esquecido de que era dia do cortejo da queima das fitas, que o trânsito estava condicionado na zona dos Fornos e que a entrada da cidade está num caos naquele ponto.Tinha outras alternativas, conheço-as como as palmas das minha mãos, mas quando dou para a burrice, é dito e feito, são umas atrás das outras. Queria chegar a horas, não é que tivesse dificuldade em vê-la, dada a minha condição, mas queria fazê-lo acompanhado pelo resto da família. Uma estopada. Depois de assistir às infiltrações na fila do trânsito, tão típica dos portugueses, desrespeitando as normas básicas de civilidade, o que me incomoda sobremaneira, esbarrei nos semáforos da rotunda da casa do sal. Trata-se de um local apetecível para vários tipos de pedintes que, no momento da queda do vermelho, atacam os condutores dos veículos de todas a

Cinzas de esperança

Tinha que acontecer. Acontece sempre. Sinto, desde há muito, que a passagem do tempo se acompanha do encurtamento da tranquilidade, anunciando, fatalmente, a desgraça. Ondas de angústia movem-se a estranhas velocidades, crescentes, desejosas de morrerem na parede do imprevisto. É a única possibilidade de as eliminar. Morre a angústia, nasce a dor mergulhada na incompreensão. Aconteceu. Toca o telefone. O visor diz quem é, e quem é, é sinal de que algo de anormal estará a acontecer. Aconteceu mesmo. Um violento curto-circuito cerebral obrigou-me instantaneamente a levantar a hipótese do diagnóstico mais provável, e, também, o mais grave. Contactos, muitos contactos, todos eles filhos de curtos-circuitos desesperados. Objetivos: confirmar o diagnóstico e estabelecer estratégias imediatas e a curto prazo. Ao final do dia fui buscá-la. Meio-admirada, ou talvez não, deixou-se transportar. Nunca perguntou o que estava a acontecer ou para onde dia. Também seria indiferente. O seu mundo interi

Doce paganismo

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Depois de uma tarde de trabalho, presidir à assembleia municipal, regressei a casa meio cansado, mas satisfeito. A sessão foi animada, politicamente um pouco quente, o que me agradou sobremaneira, mas com correção. Olho para as portas da minha casa e vejo-as enfeitadas com ramos de giestas, maias. Não foi por nada, pensei logo na minha vizinha, a Maria, pessoa simples, mais nova do que eu, e que sabe cultivar a cultura popular como ninguém. Uma surpresa que me agradou imenso e que me fez recordar outras vésperas do primeiro de maio, quando ia cortar giestas com o resto da miudagem, assim que saíamos das aulas, para depois as distribuir pelos vizinhos, enfeitando as ruas com aquele doce amarelo. Uma festa. Verdadeiros pedaços de sol pendurados nas ombreiras das portas, nas janelas, nos vasos, nas varandas a alegrarem a vida da comunidade, esconjurando os maus espíritos e afastando a fome. Quem não tivesse maias à entrada das casas corria o risco de vir a sofrer fome,

"O tambor"

- Que dia é hoje? Vinte e sete de abril? - Não! Vinte e oito. - Ah, pois é. Faz hoje anos que o teu pai foi hospitalizado, morrendo três dias depois. Foi há vinte anos, não foi? - Vinte? Não! Tanto tempo! - Olha, se não foi há vinte, não deve faltar muito. - Amanhã vejo na campa o ano. - Deixa lá, que eu vou já saber. - Como? - É fácil. Foi no final do Portugal-Escócia, em que nós ganhámos por cinco a zero, que a situação se agravou e eu chamei a ambulância. Olha, foi em 1993. - Como o tempo passa! - Neste dia o Salazar fazia anos. - Fazia? - Sim. - Como é que sabes? - É fácil. Na escola primária, no Vimieiro, obrigavam-nos a vestir a farda dos "lusitos" e, em marcha, a toque do tambor, íamos até à igreja de Santa Cruz para assistirmos à missa pelo "senhor presidente", que fazia anos. Uma chatice. - Mas qual chatice? Ir à missa? - Também. Nunca percebi porque é que tinha de ir à missa por causa do aniversário de uma pessoa. Lembro-me de ter perguntado à senhora que

"Ai o meu menino, ai o meu menino"

Sempre a vi com uma genica dos diabos, a qual, enfeitada quase sempre com um sorriso fulgurante, traduzia o seu amor pela vida, manifestando uma infinita confiança no valor do trabalho. E trabalhava. E ria-se. E fazia rir os outros. E confiava. E amava. Quando me cruzava com ela era certo e sabido que iria ouvir uma expressão com muitos anos, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino", expressão suave, cheia de ternura, doce, dita em voz baixa, contrariando a sua tendência exuberante, para que mais ninguém pudesse saboreá-la, um ato de puro e generoso egoísmo, como quem diz, só eu é que posso dizer isto, pertence-me, não quero partilhá-la com mais ninguém. E eu gostava. E ainda gosto. Não obstante a idade, que, de um modo geral, torna-nos insensíveis a muitas expressões, há algumas que não morrem, vivem e fazem-nos viver. Mais velha do que eu, mas muito mais velha quando era novo, menos, muito menos agora; o tempo de cada um encarrega-se de convergir para o mesmo foco

Engano

- Está? É da casa do senhor Joaquim Flores? - Não, minha senhora, aqui não vive nenhum senhor Flores. - Oh, desculpe, foi engano. - Não há problema. - Muito obrigada e um bom dia. - Igualmente para a senhora. Um engano qualquer um pode ter. Neste caso foi prontamente assumido, porque era evidente e inócuo. Mas há enganos e enganos. Uns são simples, banais, fazem parte do dia-a-dia, mas mesmo assim podem complicar a vida. Mas há outros que são frutos de maus juízos, de preconceitos, de falta de visão, de uma teimosia intrínseca, revelando-se dolorosos e injustos para terceiros. Quando um erro desta natureza não é assumido, então, é uma situação grave, mas há, ainda, situações mais complexas quando é utilizado com propósitos bem definidos. Há quem não admita os seus erros, porque são considerados como sinais de fraqueza, de insucesso ou de inferioridade. É mau, já que podem estar na origem de condutas fabricadas, artificiais, falsas, incómodas, daninhas, as quais são ca

Duas estatuetas...

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Comecei a trabalhar cedo. A meio da manh ã dei a desculpa habitual, vou tomar um caf é , v á , v á , senhor doutor e descanse um pouco. N ã o fui nada, j á tinha tomado um logo que cheguei. O que eu queria era um pretexto para ir ao lado, à loja das velharias. O dono, o Daniel, tornou-se meu amigo e espera que passe pelo seu estabelecimento. É o que eu fa ç o praticamente todas as semanas. Tenho alturas em que adquiro alguns objetos, desenhos ou quadros. J á conhece os meus gostos. Por vezes, ao entrar, depois de nos cumprimentarmos, avan ç a com satisfa çã o, tenho aqui uns desenhos a seu gosto. Outras vezes antecipa-se dizendo, esta semana n ã o tenho nada que lhe interesse, mas d ê uma volta, pode ser que encontre algo que lhe agrade. É o que fa ç o, duas voltas no m í nimo. Quando n ã o encontro nada, foco a minha aten çã o nas "miudezas" e acabo por comprar uma pe ç a de valor reduzido, desde que seja bonita, claro. Fa ç o-o com prazer. O Daniel agrad