Duas estatuetas...


Comecei a trabalhar cedo. A meio da manhã dei a desculpa habitual, vou tomar um café, vá, vá, senhor doutor e descanse um pouco. Não fui nada, já tinha tomado um logo que cheguei. O que eu queria era um pretexto para ir ao lado, à loja das velharias. O dono, o Daniel, tornou-se meu amigo e espera que passe pelo seu estabelecimento. É o que eu faço praticamente todas as semanas. Tenho alturas em que adquiro alguns objetos, desenhos ou quadros. Já conhece os meus gostos. Por vezes, ao entrar, depois de nos cumprimentarmos, avança com satisfação, tenho aqui uns desenhos a seu gosto. Outras vezes antecipa-se dizendo, esta semana não tenho nada que lhe interesse, mas dê uma volta, pode ser que encontre algo que lhe agrade. É o que faço, duas voltas no mínimo. Quando não encontro nada, foco a minha atenção nas "miudezas" e acabo por comprar uma peça de valor reduzido, desde que seja bonita, claro. Faço-o com prazer. O Daniel agradece mais a atenção do que o lucro que consiga obter. Às vezes, vendo a minha desilusão, é ele que sugere um ou outro objeto, rebaixando o preço a valores substancialmente inferiores aos que estão marcados, isto quando estão, porque muitos não têm preço. Prefiro as peças sem preço, apesar de o raio do homem ser pior do que um cigano. Pede valores exorbitantes, só para me provocar, rindo-se, baixando-os logo a seguir. Esta é a deixa para entrar com as minhas propostas. Depois de umas arengadas a propósito, fico mais ou menos com a sensação de que vou fazer um bom negócio, antecipando o valor final, o qual só muito raramente não é aceite. Neste caso, se tiver muito gosto em adquirir a peça, digo-lhe que não tenho dinheiro que chegue. No estabelecimento não há multibanco, se bem que a pouco mais de duas dúzias de metros haja uma caixa, mas nunca me mandou ir lá, porque seria uma forma descortês de me tratar, é o que eu sinto, porque o homem não tem nada de burro. A resposta é invariavelmente a mesma, não há problema, na próxima vez paga o resto. Depois, nas vezes seguintes, acabo por adquirir algo mais dispendioso e a "dívida" fica liminarmente perdoada, ou, então, sem me aperceber, o que é o mais certo, acaba por ser incluída no preço da nova aquisição. Eu fico convencido de que fiz um bom negócio e o vendedor ganha o seu. Uma certa cumplicidade que tem funcionado muito bem.
Esta semana, ao entrar perguntei-lhe se tinha algo de novo, não, o negócio não anda nada bem, não vendo, não compro, mas o melhor é dar uma volta. Comecei a cirandar e, no meio de vários quadros com estampas fracas, encontro um pequeno óleo, não assinado, belo, enigmático, com uma figura feminina sentada numa rocha, com as mãos numa posição pouco habitual que ainda não consegui decifrar. Quando custa? Aproximou-se, e, sem qualquer hesitação, pediu uma bagatela. Engoli em seco. No espaço de uma semana era o segundo a adquirir nestas circunstâncias. Como era barato, tinha ganho o dia, olhei para os santos, mas nada de especial, sem interesse, exceto uma Santa Helena. Uma estatueta interessante. Foi a primeira vez que vi esta santa. Subitamente, lembrei-me do seu papel na "oficialização" do cristianismo e da influência que teve no seu filho, o imperador Constantino, que, através do Édito de Milão ou Édito da Tolerância, declarou o império neutro em matéria de religião conferindo aos cristãos a liberdade de culto. A neutralidade religiosa durou pouco tempo, até Teodósio ter declarado o cristianismo como religião oficial.
Fui ler o "Édito" e achei que é uma grandeza em termos de tolerância ao permitir o culto livre aos praticantes das religiões sem imposição oficial de nenhuma. Naquela época uma medida destas foi de grande alcance, só espero que não tenha sido uma manobra política para que os "perseguidos" ocupassem o lugar dos "perseguidores". De qualquer forma, hoje, faz-nos falta um "édito de tolerância" de forma a evitar a supremacia imposta pela religião "oficial" do estado português ao impor o que lhe apetece.
A santa levou-me, também, a associá-la com a ilha do mesmo nome, descoberta por João da Nova no seu dia, 18 de agosto, e as atribulações de Napoleão, ou seja, de repente tinha motivos para dissertar sobre vários assuntos, além da beleza da mesma e da espiritualidade subjacente à sua conduta que a hagiografia descreve com belos pormenores. 
Há muito que a minha coleção de santos estava em banho-maria. Gosta da estatueta, perguntou-me o homem das velharias, é bonita, mas tenho ali uma outra dentro do armário, só que não é barata, às tantas não lhe interessa. Mostre-me. Foi então que vi uma santa bem talhada, numa posição de sofrimento, em que a face e os dedos entrelaçados emanavam dor visível, palpável, pouco habitual, questionando-me como é que o artista conseguiu criar e talhar estes sentimentos. Como é que se chama a Nossa Senhora, não sei, não faz mal, pensei, parece-me uma Nossa Senhora da Piedade ou talvez das Dores, uma abertura no peito levou-me a suspeitar que ali deveria ter estado, talvez, uma espada. Negociei. Não regateei. Deixei-o à vontade. Foi justo. A beleza da obra seduziu-me. Explicou-me que as "lesões" visíveis no queixo, nos dedos e nos joelhos eram devidas às pessoas que passavam a mão pela figura, ao pedirem favores, provavelmente muitas almas em ferida, desgastando os três setores mais proeminentes. Tinha alguma lógica, mas o que ele quis foi justificar os "defeitos". Para mim eram insignificantes.
Embrulhou as três peças. Paguei apenas a última, a "Nossa Senhora". Confesso que perturba, porque emana dor, dor de alma, dores de muitas almas com quem me cruzo no dia-a-dia, ai se eu pudesse registar o seu sofrimento, talhava-o num pequeno pedaço de madeira...

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