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"Ai o meu menino, ai o meu menino"

Sempre a vi com uma genica dos diabos, a qual, enfeitada quase sempre com um sorriso fulgurante, traduzia o seu amor pela vida, manifestando uma infinita confiança no valor do trabalho. E trabalhava. E ria-se. E fazia rir os outros. E confiava. E amava.
Quando me cruzava com ela era certo e sabido que iria ouvir uma expressão com muitos anos, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino", expressão suave, cheia de ternura, doce, dita em voz baixa, contrariando a sua tendência exuberante, para que mais ninguém pudesse saboreá-la, um ato de puro e generoso egoísmo, como quem diz, só eu é que posso dizer isto, pertence-me, não quero partilhá-la com mais ninguém. E eu gostava. E ainda gosto. Não obstante a idade, que, de um modo geral, torna-nos insensíveis a muitas expressões, há algumas que não morrem, vivem e fazem-nos viver.
Mais velha do que eu, mas muito mais velha quando era novo, menos, muito menos agora; o tempo de cada um encarrega-se de convergir para o mesmo foco, o final da vida, onde as diferenças se esbatem e a igualdade se manifesta em toda a sua plenitude.
Lembro-me de uma tarde de primavera avançada, ou de verão precoce, já não sei bem, em que no grande quarto as mulheres se encarregavam de dobrar os lençóis, de os passar e do cheiro que os mesmos libertavam da água do rio, arrefecendo a atmosfera como se estivesse na sua margem. Era o dia em que o rio, não muito distante, entrava em casa. Uma frescura e um odor inesquecíveis. Era nova, mas mulher feita, e eu um catraio, um pirralho, atento a tudo o que me cercava. Nesse dia, a sua voz não se fez sentir com a alegria que a caracterizava, nem tão pouco fez a sua saudação tão típica, "ai o meu querido menino, dá cá um beijo". Sentou-se na borda de uma das camas e começou a falar com uma tia mais velha, solteirona e meia bruta, pelo menos nunca se livrou do meu preconceito infantil. Falavam em voz baixa, não consegui ouvir o que diziam, mas era muito estranho. Passadas umas semanas compreendi tudo, a barriga tinha aumentado de volume. Tinha amado. Depressa voltou ao normal, colocando a sua voz na oitava que lhe era tão própria e disparando sempre que me via, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino". Foi à vida, casou, trabalhou, amou, e acabou um dia por demenciar. Quando soube deste último pormenor fiquei incomodado. De tempos a tempos via-a, ouvindo sempre a mesma expressão, expressão que foi, também, transmitida para o meu mais novo, uma estranha "genética" não relatada em nenhum tratado ou compêndio.
Entro no lar e vejo-a sentada. Os seus olhos, vidrados como se tivessem sido acabados de polir, denunciavam estar desligados da alma, a pele, retesada, mais parecia ter sido curtida em vida, os lábios, penosamente, agarravam-se a um sorriso perdido e a saliva, liberta das emoções, teimava em querer libertar-se nos cantos. Corpo amarrado à cadeira, alma aprisionada no corpo. Olhou-me. Olhei-a. Chamei-a pelo nome. A alma, aprisionada no corpo, ouviu e fez um esforço louco para comunicar, aproveitou uma nesga de lucidez, e disse: "ai o meu menino, ai o meu menino", a pele relaxou-se, adquiriu expressão, calor e cor, o corpo estremeceu, quis levantar-se, abaixei-me, encostei-lhe a cara e ouvi: "ai o meu menino, ai o meu menino", num estertor de alegria de uma alma sofredora e agrilhoada a um maldito destino. Passados poucos minutos, a nesga de lucidez fechou-se e eu senti a dor da sua alma, desejosa de amor, de liberdade e de carinho, castigada a um purgatório sem sentido nesta estranha vida.

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