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"Braço direito"

Ao levantar-lhe o braço senti de imediato que a força da gravidade estava a reclamá-lo gulosamente, largo-o e cai estrondosamente sem esboçar qualquer resistência, como se não existisse. Fácil, foi muito fácil perceber o que estava a acontecer. Depois, o resto do exame elucidou o que se tinha passado. A inconsciência, sinónimo da gravidade da situação, libertou-a da angústia de mais uma tragédia, o mínimo que a vida lhe podia propiciar. Deixou de comunicar, fecharam-se todos os canais que a ligavam a este mundo; nem as palavras, nem as carícias, nem os beijos, nem os olhares me permitiram penetrar na sua alma, nem sei por onde ela anda. Vagueia. Sei que não é possível voltar a ouvi-la a pronunciar os seus discursos confusos e deformados através de janelas empedernidas e meio abertas. Sei o que está a acontecer, sei onde estão as lesões, sei isso tudo, mas, mesmo assim, dou por mim a chamá-la pelo nome, e pelo laço mais íntimo, digo tolices, tolices que sei que gostava de ouvir, provo

"É português?"

Na sequência de uma troca de galhardetes, um amigo meu tentou justificar as suas afirmações invocando o período das Descobertas, a época áurea de Portugal. Não concordei e avancei com a teoria de que a ciência e a técnica dos judeus sefarditas, aliadas à manhosice dos nossos governantes, é que foram os principais determinantes. Daqui passámos para os judeus. O meu amigo reconheceu que tinham "muito do conhecimento que nos faltava, mas... não possuíam pátria, fomos nós que lha demos, em troca do conhecimento que usámos para descobrir os caminhos que facilitaram o comércio que eles sabiam gerir muitíssimo melhor que nós". Esta afirmação levou-me a ripostar dizendo que Portugal também era pátria de muitos judeus e que a religião não deveria ser a condição para impor direitos a ter ou não pátria! Eles consideravam-se portugueses, tanto como os que ficaram, os que mataram e perseguiram homens, mulheres e crianças da Lei da Tábua. Prometi contar-lhe uma pequenina história, um sim

Nem silêncio, nem solidão!

Nas longas noites em que fazia urgências no velho hospital, costumava ir descansar um pouco num quarto situado no primeiro piso, mesmo por cima, e ao lado de um corredor onde, quando não havia mais lugares nas duas salas de observações situadas ao fundo, eram "armazenados" os "excedentes". Os sons de dor, as respirações ofegantes, os discursos incoerentes e os pedidos angustiados, criavam uma atmosfera horrível capaz de arrancar a alma de qualquer um a ponto de desejar fugir e nunca mais voltar. Todo aquele cenário obrigava-me a pensar no sofrimento, sobretudo no que se manifesta no final da vida. Mesmo assim o cansaço de um longo dia, que parecia não querer terminar, acabava por me vencer, e adormecia, ou fingia que sim. A certa altura, verificava que até os doentes, meus vizinhos de ocasião, e candidatos a futuras almas penadas, se tranquilizavam, ainda que momentaneamente, criando de súbito uma atmosfera de terror, porque os seus silêncios também me faziam sofrer

Vidas paralelas...

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Desenho de Artur Moreira Lá fora a noite divertia-se a jogar às escondidas num desconfortável silêncio. Ao sentar-se, na tranquilizadora penumbra da sala, uma folha branca desgarrada, vinda não se sabe bem de onde, parecia que lhe estava a falar. Olhou. Ao pegar-lhe sentiu algo de estranho. Não era totalmente lisa, tinha uma textura suave, mas ondulante, com zonas mais quentes do que outras, como se fosse uma membrana a revestir um ser prestes a nascer. Parecia que a membrana vibrava ao sabor de uma energia musical. Afinal não estava a ouvir nada, sentia algo, sim, sentia, só que não era, também, tátil, mas como não entendia bem o que estava a acontecer teve de se socorrer da linguagem dos sentidos para interpretar tão estranho fenómeno. Recordou-se de ter lido nessa tarde alguns textos sobre as teorias das cordas, das supercordas e da teoria M, dos multiversos e universos paralelos, algo confuso para quem não é físico, mas muito aliciante ao explicar que a vastidão

"Colecionar almas"...

Os fenómenos astronómicos seduziram-me desde muito cedo. Recordo-me neste momento de uma noite agradável e escura como o breu em que, de joelhos na cama e queixo sobre as mãos sobrepostas, olhava para o teto do céu. Via muitas luzinhas a tremelicar. Lá fora nem uma lâmpada ou candeeiro aceso. Era capaz de jurar que ouvia sons delicados que vinham das alturas. Já tinha ouvido que eram estrelas. Naquela noite explicaram-me mais umas coisas e qual a diferença com os planetas. Estás a ver além aquela "estrela"? A luz não treme. Pois não! Não tires os olhos e vais ver que daqui a pouco já mudou de lugar, é um planeta. Passei a olhar com muita atenção, mas ela parecia estar sempre no mesmo sítio. Eu julgava que a podia ver andar devagarinho. Olhava, olhava, mas ela não se movia. O esforço e o cansaço encarregaram-se do resto. No dia seguinte, nova tentativa. A beleza fascinante das luzes e do som que ouvia, como se fossem grilos, mas era diferente, mais lindo, mais baixo, parecia q

Incerteza

Não passa um dia em que não assista ataques à ciência e às teorias que nos permitem ver o mundo. O comportamento dos criacionistas exige atenção e muito cuidado, não vão um dia "proibirem" que se produza ciência. Num editorial da Nature, Russel Garwood analisa o aproveitamento sistemático de certas notícias por parte dos não cientistas para desacreditarem o evolucionismo. A última foi a propósito das penas de um grande dinossauro recentemente descoberto e as penas das aves. Os movimentos criacionistas estão em crescendo, obrigando que, nalguns estados norte-americanos, através de leis, seja ensinada a "fraqueza da evolução". Estes grupos reiteram continuamente os "hiatos" da evolução, e, também, utilizando alguns achados, como a não evolução de algumas espécies, que se mantém inalteráveis há mais de 350 milhões de anos, como sendo "provas" da criação. Os cientistas, perante estas críticas, dizem que não sabem os porquês.

Poluição estrogénica

Fala-se muito no défice de natalidade, que está a preocupar muitas nações, entre as quais a nossa, já que de ano para ano nascem menos crianças, que, por sua vez, são geradas em úteros cada vez mais envelhecidos. Consequências? Muitas, nomeadamente problemas demográficos com implicações a vários níveis. O fenómeno é relativamente novo, começou a dar os primeiros passos há meio século com a descoberta de uma das maiores invenções da humanidade, a "pílula". A mulher libertou-se, passou a controlar a natalidade separando-a da sexualidade, autonomizou-se, revolucionou o mundo e a vida sofreu grandes e profundas transformações. Uma substância química pode originar estranhos e complexos fenómenos e, ao mesmo tempo, ter outras implicações, nomeadamente de natureza ambiental. Um dos principais componentes dos contracetivos orais, o etinilestradiol (EE2), é lançado nos esgotos através da urina. Sabendo que mais de cem milhões de mulheres tomam estes compostos, é fácil