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"Colecionar almas"...

Os fenómenos astronómicos seduziram-me desde muito cedo. Recordo-me neste momento de uma noite agradável e escura como o breu em que, de joelhos na cama e queixo sobre as mãos sobrepostas, olhava para o teto do céu. Via muitas luzinhas a tremelicar. Lá fora nem uma lâmpada ou candeeiro aceso. Era capaz de jurar que ouvia sons delicados que vinham das alturas. Já tinha ouvido que eram estrelas. Naquela noite explicaram-me mais umas coisas e qual a diferença com os planetas. Estás a ver além aquela "estrela"? A luz não treme. Pois não! Não tires os olhos e vais ver que daqui a pouco já mudou de lugar, é um planeta. Passei a olhar com muita atenção, mas ela parecia estar sempre no mesmo sítio. Eu julgava que a podia ver andar devagarinho. Olhava, olhava, mas ela não se movia. O esforço e o cansaço encarregaram-se do resto. No dia seguinte, nova tentativa. A beleza fascinante das luzes e do som que ouvia, como se fossem grilos, mas era diferente, mais lindo, mais baixo, parecia que vinha de todos os lados, fascinavam-me, perguntei se as estrelas tocavam música. Devem ter interpretado como sendo efeito do sono. De facto, devo ter adormecido mais uma vez, porque não vi a "estrela" a movimentar-se. E assim iniciei a minha iniciação astronómica. Soube que a "minha estrela" andou a provocar o sol, passando com alguma voluptuosidade debaixo das suas barbas. Um fenómeno raro. Agora só daqui a mais de um século é que volta a fazer o mesmo. É de facto um fenómeno raro e quando tal acontece tem direito a ser noticiado e divulgado à exaustão. Eu gosto de fenómenos raros e diariamente sou confrontados com eles, são os equivalentes às estrelas do céu, são almas humanas. Hoje passou-me pela cabeça de que devo estar a transformar-me num coleccionador de almas. À parte o estado de saúde, que é objetiva e friamente escrutinada, olho para elas como se estivesse à janela do meu quarto, em pequeno, deliciando-me com a beleza das estrelas. Deixo-as falar, provoco-as quando se silenciam, e arranjo estratagemas para as conhecer melhor. Passam a falar, contam coisas, aprendem coisas e mudam de estado de espírito num tremelicar constante com mais ou menos brilho e eu entro em "trânsito". Gosto, confesso. As almas começam a entrar umas atrás de outras, como foi o caso de um jovem com cerca de dois metros de altura, bailando uma gravata imposta, qual cabeção de padre, a dar indicações sobre a sua profissão de bancário. A arrogância de dois metros de altura acabou por ser substituída por uma estatura de humildade que não deveria ultrapassar um "metro e meio" à saída. Aprendeu, com toda a certeza. Outra, tímida, medrosa, defendia-se com o mais sedutor dos sorrisos, acabando por deixar um halo de frescura e de alegria à saída. A pobreza cognitiva de um jovem e de outro mais idoso obrigou-me a ir para os seus terreiros, ficaram felizes. A senhora de uma intelectualidade acirrada e desafiadora lançou temas que adoraria continuar a abordar, conforme referiu, enquanto a Lucília se deliciou com algumas histórias e comentários a propósito do seu nome, que desconhecia, rindo-se como a Lucille, a comediante, e com a guitarra de BB King. O operário da construção civil , filho de um criador de cavalos, deu-me uma das lições mais ricas, concentrada e pedagogicamente perfeita. A manhã corria com rapidez preocupante comprometendo o almoço que eu não me importaria de sacrificar. Mas há sempre alguém que se preocupa com o estômago dos outros e, sobretudo, com o seu. Graças a Deus! E a simpática jovem que à pergunta se tinha sido sujeito a alguma intervenção respondeu, que sim, fiz uma cesariana, por causa das minhas gémeas. Gémeas? Como se chamam? Maria e Leonor. Hum! Leonor? Está bem arranjada, são muito determinadas, sabe, a minha neta mais nova chama-se Maria Leonor. Não me diga, é um nome muito lindo, ai eu gosto tanto. Mas diga-me uma coisa, habitualmente Maria é um nome "auxiliar" que se usa com outros. Antes que continuasse, respondeu-me, eu sempre quis ter uma menina chamada Maria Leonor e quando soube que estava grávida de duas dividi o nome por ambas, assim uma chama-se Maria e a outra Leonor, e como gosto de dizer "Maria Leonor" sabe o que acontece? Aparecem logo as duas. Uma agradável gargalhada inundou o espaço do gabinete e o meu "trânsito" continuou pela tarde fora. Não preciso de esperar um século para que este fenómeno se repita. Confesso mais uma vez, gosto, preciso de colecionar almas para poder alimentar a minha, através da minha janela, tal como em pequeno, olhando e ouvindo estrelas mais ou menos cintilantes, mais ou menos musicais, mas sempre únicas...

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