Ao levantar-lhe o braço senti de imediato que a
força da gravidade estava a reclamá-lo gulosamente, largo-o e cai
estrondosamente sem esboçar qualquer resistência, como se não existisse. Fácil,
foi muito fácil perceber o que estava a acontecer. Depois, o resto do exame
elucidou o que se tinha passado. A inconsciência, sinónimo da gravidade da
situação, libertou-a da angústia de mais uma tragédia, o mínimo que a vida lhe
podia propiciar. Deixou de comunicar, fecharam-se todos os canais que a ligavam
a este mundo; nem as palavras, nem as carícias, nem os beijos, nem os olhares
me permitiram penetrar na sua alma, nem sei por onde ela anda. Vagueia. Sei que
não é possível voltar a ouvi-la a pronunciar os seus discursos confusos e
deformados através de janelas empedernidas e meio abertas. Sei o que está a
acontecer, sei onde estão as lesões, sei isso tudo, mas, mesmo assim, dou por
mim a chamá-la pelo nome, e pelo laço mais íntimo, digo tolices, tolices que
sei que gostava de ouvir, provoco-a, usando algumas frases com as quais fingia
que se irritava, mas nada, apenas silêncio e uma fria ausência. Fico
surpreendido com esta dualidade, a minha parte técnica a querer, friamente,
impor-se, e a humana a querer comunicar a todo o transe, tentando, ingloriamente,
vislumbrar qualquer sinal de relação. Nada. Limito-me a acariciar a sua face
inexpressiva e a tocar-lhe no braço ausente, membro sem vida, mas com calor, um
calor que saboreio e que acarinho. Estranho tocar num braço paralisado que toda
a vida conheci. O meu braço. Aquele braço pegou-me ao colo, lavou-me, fez-me
festas, deu-me de comer, ensinou-me a escrever e a persignar, avisou-me dos
perigos da vida, ameaçou-me sempre que assim o entendia, chegou-me a roupa ao pelo,
trabalhou duramente, deu-me boas notícias, deu-me a mão nas horas de sofrimento
e da doença, foi fonte de carinho e de amor, limpou vezes sem conta os seus
olhos, disse-me adeus e acenou-me com as suas alegrias, agora transformado num
membro silencioso. Nunca me tinha apercebido do valor real do seu braço, agora
sei, porque era o meu. Toco-lhe, acaricio-o, esperando que o meu calor faça
despertar, ainda que momentaneamente, a sua alma, mas nada, nem a alma me liga nem
o braço me sente, mas eu sinto-os bem, a alma e o braço direito...
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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