Nas longas noites em que fazia urgências no velho hospital, costumava ir descansar um pouco num quarto situado no primeiro piso, mesmo por cima, e ao lado de um corredor onde, quando não havia mais lugares nas duas salas de observações situadas ao fundo, eram "armazenados" os "excedentes". Os sons de dor, as respirações ofegantes, os discursos incoerentes e os pedidos angustiados, criavam uma atmosfera horrível capaz de arrancar a alma de qualquer um a ponto de desejar fugir e nunca mais voltar. Todo aquele cenário obrigava-me a pensar no sofrimento, sobretudo no que se manifesta no final da vida. Mesmo assim o cansaço de um longo dia, que parecia não querer terminar, acabava por me vencer, e adormecia, ou fingia que sim.
A certa altura, verificava que até os doentes, meus vizinhos de ocasião, e candidatos a futuras almas penadas, se tranquilizavam, ainda que momentaneamente, criando de súbito uma atmosfera de terror, porque os seus silêncios também me faziam sofrer. Parece que na noite há um momento estranho em que o silêncio se impõe a tudo e a todos, até mesmo naquele ambiente de dor em que seria de esperar a exceção. Mas era escuridão de pouca dura, porque logo que um se lembrasse de começar aos ais, todos os outros, numa solidariedade patética, repetiam os seus acordes, gemidos, lamentos e pedidos. Os velhos predominavam, como seria de esperar, mas o que mais me tocava era quando chamavam pelas mães, mães que há muito tinham desaparecido, e cujo nome provavelmente não o pronunciavam desde então, ou, até, muito antes, pelo menos com aquela intensidade. Considerava-o como um sinal de derradeiro apelo a alguém que a terra há muito tinha digerido, não sei se com satisfação, desconheço os seus apetites e necessidades nutritivas. Quando tal ocorria, ficava suspenso sobre o tempo que iriam durar aqueles apelos. Muitas vezes eram os últimos, tal como frequentemente constatava durante o despertar do amanhecer. O acumular destas evidências, ao longo do tempo, provocavam-me angústia, obrigando-me a refletir sobre a morte, a dignidade do momento e os seus efeitos devastadores ou não sobre a forma de ver o mundo e as pessoas. Na altura era jovem, muito jovem, mas, mesmo assim, penso ter aprendido muito naqueles curtos momentos de pretenso descanso em que ficava sozinho, paredes meias com candidatos a almas penadas que em em vida iniciavam a estranha errância. Eu vi-as e suspirava pelo sono, mesmo que fosse curto, julgando que, assim, podia livrar-me daquele tempo, o tempo que antecede a morte. Ainda hoje ouço distintamente as suas vozes, as suas respirações, os seus gritos, os seus apelos e aqueles estranhos pedidos de auxílio às mães, os únicos que faziam sentido em mentes prestes a libertarem-se do mundo em que tinham nascido. O que me afligia era a solidão, o silêncio social dos que morrem arredados dos seus. Nem dão conta de que estão a morrer, dirão, mas quando se nasce também não damos conta e, no entanto, tudo circula em nosso redor como se fossem atraídos pela força centrípeta da vida. Do outro lado, impera, inexoravelmente, a força centrífuga da morte, contribuindo para a solidão e silêncio dos que irão desaparecer.
Eu não vou deixar que morra em silêncio e na solidão.
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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