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Morro de tédio...

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Morro de tédio se não encontro um espaço onde possa afogar-me. São as pausas convencionais que me obrigam a isso. Longe do habitual tenho de criar novas rotinas, necessito como pão para o corpo encontrar tal espaço. Que espaço?Algo que me surpreenda e me convide a fugir do esperado, do vulgar, da monotonia estúpida e necessária à sobrevivência. Encontrei mais um, inesperadamente, estava à minha espera. Vagueei. Precisava de um lugar para ler ou para escrever. Vagueei e encontrei. Sentado num banco de pedra, e tendo à minha frente uma vasta e soberba secretária de granito, comecei a ler. Uma página apenas, li apenas uma. A narrativa daquela curta mas bela passagem fez-me despertar para a minha miragem. Toquei-lhe, absorvi-lhe os silêncios, deliciei-me com a sombra da palmeira solitária e fui impregnado pelo espírito de um interessante painel de azulejos, velho, filho do calor da fornalha, mas eterno na vida da mensagem. Espero, falta pouco para regressar à superfície da vida. Sinto o

Mágoa...

É muito agradável quando uma pessoa se sente útil, ajudando quem necessita. Considero ser a mais bela e profunda expressão de humanidade, poder resolver ou contribuir para solucionar um problema, esclarecer uma dúvida ou aliviar e combater o sofrimento e o horror de um desconhecido por vezes demoníaco. É muito agradável e tem como compensação a alegria de ter ajudado quem necessita. Tão simples como isso, um princípio cristão, dirão, sim, mas que existiu desde sempre, por isso prefiro chamar-lhe a verdadeira marca da condição humana.  Tenho feito o que posso e não posso fazer o que gostaria. Alguns, na sua humildade e sofrimento procuram-me para que os possa tratar ou ajudar. Como poderei ajudá-los, penso eu muitas vezes, impotente face ao desfilar da doença e ao avizinhar da morte. Falo, conversamos, rimo-nos, olhamo-nos e, por vezes, no final, até nos abraçamos, não vá acontecer ser a última vez em que cuidamos um  do outro. Fica sempre um sabor terno, doce, mas triste, que nunca

"Pele curtida, beleza esquecida"

Entrou com algum desembaraço, revelando uma beleza já um pouco esquecida, mas, mesmo assim, suficientemente interessante para chamar a atenção. A face revelava algo de estranho, misto de satisfação e de tristeza, como se a pele tivesse sido curtida pelo sofrimento e os olhos talhados de esperança. As perguntas sacramentais foram lançadas ao ar, e sem saber porquê antevi uma resposta não habitual. - Estou bem, depois de ter perdido tudo, carro, casa, tudo, estou bem. Esboçou um espasmo a querer transformar-se num rio de lágrimas, mas travei-o, desfocando a conversa. Não era difícil saber o que é que lhe tinha acontecido. Uma simples palavra ou um olhar silencioso teriam sido mais do que suficientes para desnudar a sua alma. Não quis. Desta feita não quis. Soube que vivia longe e soube que teve de começar a viver perto. Soube que durante dez anos teve de fazer longos percursos, com muito sacrifício. Repetiu mais duas vezes pequenos espasmos faciais a quererem desfazer-se em água. Evitei

Olhos negros

Manhã bela e tranquila. O sol, atrevidamente, entrava no gabinete, não sei se por curiosidade ou por bondade. Os seus raios iluminaram um belo par de olhos negros, muito brilhantes. Por momentos fiquei sem saber se era o reflexo do sol ou raios emitidos por um sol invisível. Jovem. O cabelo chamou-me a atenção, cortado à escovinha, encaracolado, e salpicado de brancas, dava conta de que estaria a ver pela primeira vez o sol, recém  libertado de uma prisão artificial. Antes de lhe falar entrega-me o papel, onde estava descrito a sua má fortuna de uma forma fria, exata e dolorosa. Li e registei. Os olhos negros continuavam a brilhar emitindo raios de um sol invisível receoso do seu congénere que continuava a invadir todo o espaço e todos os seres visíveis e invisíveis. Desabotoou os botões da sua blusa, deixando entrever na frescura da carne a mutilação anunciada. Não falámos muito, usámos mais os silêncios e os olhares entremeados de curtas e esclarecedoras frases. No final, despediu-

O sol quer brincar...

Conheço o sol há muito tempo, muito para mim, claro, porque para ele eu não valho um espirro de uma formiga. Mesmo assim, já o conheço suficientemente para dizer que pode ser louco, irrequieto, tímido, mau, meigo, mortal, amoroso, triste, enfim, nunca vi nada na minha vida parecido com as suas múltiplas facetas. Bem mais previsível é a sua sombra da noite, a lua, sempre discreta, fria, com laivos permanentes de uma enigmática tristeza, apenas suspensa durante belos momentos em que, cheia que nem um odre de vinho, se levanta no horizonte encharcando o espaço de um abraço acobreado, despertando e transformando seres que só ela conhece.  Agradeço ao sol algumas das mais belas e inesquecíveis imagens gravadas com raios tépidos no corpo e na mente de uma criança. Ansiava por esta altura do ano, embora não tivesse ainda muitas memórias de outros. Imaginava que fora sempre assim.  O sol ensinou-me a compreender o sentido de muitas palavras e as estações do ano. Afinal de contas não eram

Maionese

Leio com interesse as opiniões sobre a origem do homem e a sua eventual relação com deus. Em pequeno ouvia as explicações, mas era mais fácil acreditar nas prendas que o menino Jesus me dava no Natal do que acreditar nas histórias bíblicas da criação do mundo, ou melhor, do homem, porque o mundo fazia-me muita confusão, era grande demais para mim, já que estava acantonado a uma pequena e desconhecida vila. Cedo comecei a ouvir que os homens se maltratavam uns aos outros. Ouvia muito acerca da guerra, dos mortos, dos feridos, da miséria e da fome. Vi a agressividade expressa na violência brutal que as mulheres eram vítimas durante o silêncio da noite rasgado pelos gritos de dor. Vi a dor expressa nos rostos de pais que perdiam os seus pequeninos. Sentia-me ofendido com a explicação do padre, segundo o qual deus queria "anjinhos", "matando" bebés não batizados, alguns dos quais levei até ao cemitério, sem qualquer cerimónia religiosa. Quando queriam explicar algo

Reviver a madrugada

Assistir ao espreguiçar da madrugada causa-me imenso prazer mesmo quando a vontade de viver é diminuta. Um estranho delírio que me persegue há muito. Em miúdo revoltava-me contra o despertar prematuro, mas ao fim de alguns minutos a embriaguez embrutecida do sono era substituída pelo delicioso inebriamento matinal. Hoje, ao olhá-la, sinto uma estranha fome de viver que faz esquecer a vontade de morrer. Olho para o relógio e aguardo a chegada do comboio. Recordo outros comboios e outras madrugadas, mas o cheiro, a brisa fresca e o suave calor que se avizinha são os mesmos. Quem sabe se os que morrem a estas horas não as escolhem de propósito, aproveitando os últimos momentos da vida para ondularem no renascer de uma madrugada. O comboio, elegante, pujante, deslizando silenciosamente, interrompe-me o pensamento. Entro. Olho em redor e vejo muitos figurantes. Evito entrar nas suas intimidades tentando imaginar quem são, o que fazem, o que pensam ou o que sonham. Prefiro ler. Uma viage