Entrou com algum desembaraço, revelando uma beleza já um pouco esquecida, mas, mesmo assim, suficientemente interessante para chamar a atenção. A face revelava algo de estranho, misto de satisfação e de tristeza, como se a pele tivesse sido curtida pelo sofrimento e os olhos talhados de esperança. As perguntas sacramentais foram lançadas ao ar, e sem saber porquê antevi uma resposta não habitual. - Estou bem, depois de ter perdido tudo, carro, casa, tudo, estou bem. Esboçou um espasmo a querer transformar-se num rio de lágrimas, mas travei-o, desfocando a conversa. Não era difícil saber o que é que lhe tinha acontecido. Uma simples palavra ou um olhar silencioso teriam sido mais do que suficientes para desnudar a sua alma. Não quis. Desta feita não quis. Soube que vivia longe e soube que teve de começar a viver perto. Soube que durante dez anos teve de fazer longos percursos, com muito sacrifício. Repetiu mais duas vezes pequenos espasmos faciais a quererem desfazer-se em água. Evitei-os novamente, porque vi, simultaneamente, uma satisfação, uma alegria, como se fosse uma aberta em dia de tempestade anunciada. - Então, quando é começou a trabalhar aqui, perto de casa. - Hoje. A alegria de dizer hoje foi tão bonita que me pareceu ver a sua pele curtida pelo sofrimento a adquirir a beleza e a frescura de outrora. - Parabéns. O melhor é ir aproveitar o resto do dia. O sol convida a isso. - Obrigada, é o que vou fazer. E saiu com o mesmo desembaraço com que entrou. Chorar e relembrar a dor e o sofrimento num dia de felicidade não se faz a ninguém. Eu não fiz.
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
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