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Reviver a madrugada


Assistir ao espreguiçar da madrugada causa-me imenso prazer mesmo quando a vontade de viver é diminuta. Um estranho delírio que me persegue há muito. Em miúdo revoltava-me contra o despertar prematuro, mas ao fim de alguns minutos a embriaguez embrutecida do sono era substituída pelo delicioso inebriamento matinal. Hoje, ao olhá-la, sinto uma estranha fome de viver que faz esquecer a vontade de morrer. Olho para o relógio e aguardo a chegada do comboio. Recordo outros comboios e outras madrugadas, mas o cheiro, a brisa fresca e o suave calor que se avizinha são os mesmos. Quem sabe se os que morrem a estas horas não as escolhem de propósito, aproveitando os últimos momentos da vida para ondularem no renascer de uma madrugada.
O comboio, elegante, pujante, deslizando silenciosamente, interrompe-me o pensamento. Entro. Olho em redor e vejo muitos figurantes. Evito entrar nas suas intimidades tentando imaginar quem são, o que fazem, o que pensam ou o que sonham. Prefiro ler. Uma viagem de ida e volta é um bom pretexto para ler uma obra. Vejo o número de páginas e concluo que vou ter tempo para a ler e até para dormitar, prazer refrescante que não abdico, filho da cadência hipnótica dos rodados. Eu sabia que a madrugada já tinha desaparecido, sem avisar, como é costume, mas eu fingia que não, prologando-a dentro da minha vontade. Cheguei ao destino e ela partiu. Mudei de plataforma e entrei no suburbano. Sujo. Anárquico. Novos figurantes, suburbanos, sem expressão, fácies a relembrar dentes desvitalizados, escuros e indolores. Atravesso parte da cidade, suja, escondendo tragédias, más vontades, covis de feras loucas e ilhas de gente boa e sofredora. Não consigo encontrar qualquer encanto. Atormenta-me a plasticização dos cumprimentos e atenções, evito fazer quaisquer comentários, porque posso ser mimoseado com exclamações patéticas, que me desagradam sobremaneira. Reunião fingida. Os que falaram, falaram para justificar os seus postos dominantes. Tiveram de fazer esforços para dizer meia dúzia de patacoadas cujo sentido e nexo me escaparam. O que não escapou foi uma vontade mortal para dormir, valeu-me a posição onde me encontrava. Ouvia-os muito longe e ainda fui invadido por um fugaz sonho. Cheguei a recear que me vissem a cabecear e interpretassem o movimento como sinal de aquiescência, pelo que tive de engendrar alternativas que me permitissem aguentar, estoicamente, a reunião. Felizmente acabou. Ao cumprimentar o presidente reparei que estaria à espera de um comentário. Delicadamente elogiei a forma como conduziu os trabalhos. Saí com um indisfarçável alívio. Após uma breve refeição em ambiente controlado, inodoro, frio e distante, acossado por humanos robotizados desejosos em testar a minha paciência, fugi com o meu livro até ao comboio, esperando que me devolvesse com conforto a casa. Sentei-me. Olho em redor e vejo muitos figurantes. Desta vez entrei nas suas intimidades e pus-me a imaginar quem seriam, o que faziam e o que sonhavam. Construi narrativas. Não as registei. Deixei que se esvaecessem, mas soube-me bem. Acabei de ler o livro e ainda dormitei sob o efeito hipnótico dos rodados do comboio. Uma reunião sem história, gente sem interesse, um livro devorado no ventre de um comboio, narrativas voláteis despertadas pelos figurantes da vida e uma vontade de encontrar uma madrugada que nunca desapareça, como se isso fosse possível...

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