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"Fome"...

Sinto fome. Não é habitual. Falta pouco tempo para poder ir almoçar. É bom sentir fome, penso menos e menos me preocupo. O estômago vazio tem esse condão. Arrepia-me ter as mesmas conversas, vomitar os mesmos conselhos e advertir os mesmos perigos para receber em troca a mesma indiferença, a mesma desconfiança, a mesma, quase que me apetecia dizer, brutalidade. Lentamente começo a ficar indiferente face aos factos. Mudar comportamentos? Seria bom, mas nem sempre se consegue e sempre que falo, quase sempre sinto um olhar de descrença, e às vezes de náusea, como se estivesse a insultar ou roubar a tranquilidade a uma pessoa. Não suporto alguns olhares, não é que fique intimidado, mas incomodam-me, não escondem o que pensam, mostram o que são, convencidos de que estão protegidos atrás de barreiras intransponíveis. Barreiras de cartão, é o que são. É quase tudo a fingir. Só o sofrimento é que não, esse dói, perturba e rouba a tranquilidade. Nessa altura, a humildade brota lágrimas de dor,

"À pressa"...

Comi à pressa, estava com pressa, matei a fome e corri à pressa. Sento-me, ainda tenho alguns minutos, não muitos, mas os suficientes para dar ao dedo, libertar a alma e dar descanso ao estômago para que possa trabalhar. Já o adverti, sem pressa, não vá a pressa dar-me cabo da tarde. Não sei se me ouviu ou não, mas quero pensar que sim. Sento-me, ainda tenho alguns minutos, não muitos, mas os suficientes para dar alimento à minha alma, sem pressa. Gostava de permanecer aqui muito tempo, o tempo necessário para matar qualquer pressa, a pressa de viver, a pressa de trabalhar, a pressa de me incomodar, a pressa de me libertar e a pressa de sofrer. Tudo merece ser feito sem pressa. Eu queria mas não consigo. O único sítio em que o tempo passa sem pressa é aqui, ainda não passou muito tempo, não o sinto, nem quero senti-lo, quero apenas ficar sentado na penumbra do espaço e na sombra do tempo, onde o sol não entra, o calor também não, o frio desaparece e a tranquilidade nasce e renasce num

"Conselho"...

Estar sentado sozinho numa esplanada ao fim da tarde é aliciante porque permite conjugar muita coisa, o sol, a brisa fresca, os sons da água, o agitar da passarada, o coaxar das rãs e o silêncio dos humanos. Eis que alguém me cumprimenta. Não o vi chegar, mas a sua voz inconfundível, espécie de mel embrulhado em eterna malandrice, denunciou-o. Olhei e cumprimentei-o com prazer. Estava agarrado a um gelado. Parecia um puto. Apesar da proeminência abdominal, e do bigode e pera que começam a perder o grisalho, via-se que o saboreava com particular prazer. Olhou-me e atirou: - Um gelado! Tem que ser, apeteceu-me, estava em casa e disse para mim, agora, que não está lá ninguém, é a altura de comer um gelado. E a minha mulher também saiu. Um gelado não faz mal a um diabético, pois não, senhor doutor? - Ah! É diabético? Perguntei-lhe. - Sou! Mas não sou daqueles que tomam as injeções, como é que se diz? - Insulina. - Pois, isso mesmo. Não sou desses, eu sou um diabético normal. - Quais são o

"Sopro"...

Um sopro para poder começar a tarde. Pode ser um sopro de indiferença, um sopro de alegria, um sopro de esperança, um sopro de criatividade, um sopro de vida, o que eu quero é sentir, ouvir ou tocar um sopro. O sopro desperta-me. O sopro tranquiliza-me. É a força da justificação capaz de invadir o corpo e a mente que lutam sem ter nada para lutar. O sopro é a única unidade de tempo que vale a pena utilizar, mede, marca e não deixa recordação. É apenas um sopro. O que eu precisava agora era mesmo de um sopro, vindo não importa de onde, apenas um sopro que me levasse a recordá-lo no futuro através de curtas linhas para o poder saborear. Saborear um sopro ou respirar um sopro? Afinal tudo começou com um sopro e irá terminar com um outro. Dois sopros. Não me lembro do primeiro e não quero lembrar-me do último, o que eu queria era um pequeno sopro de vida, de satisfação, de alegria ou de tranquilidade, apenas um, um sopro, mas neste instante. Não o sinto, não o vejo, mas desejo-o.

"Testículos"...

A notícia de um estudo recentemente publicado em que é "revelado" que os homens com testículos mais pequenos aparentam ter mais cuidados e atenção face aos que apresentam os ditos cujos com maiores dimensões levou-me a escrevinhar uma curta opinião. É recorrente a publicação na comunidade científica de certos trabalhos ditos "sensacionalistas" que são de uma apetência extraordinária para a comunicação social e para o público em geral. É certo que divulgar conceitos científicos é de uma importância inquestionável e que ajuda o progresso, a cultura e o desenvolvimento do ser humano. O pior é que o conhecimento não deve ser feito nesta base, porque pode levar a interiorizar na comunidade conceitos banais, simplistas, enviesados e até, porque não, disparatados, comprometendo a tríade que já foquei, progresso, cultura e desenvolvimento do ser humano. Uma contradição em crescendo, ou seja, cada vez há mais informação que, não sendo devidamente tratada, pode constituir u

"Folhas"...

Ainda não começaram a cair em força, mas já estão a perder a frescura, dobram-se, não falam, não cantam de alegria e gemem de dor sob o vento que lhes seca as poucas lágrimas que ainda tem. Querem amarelecer e envergonham-se de não poderem viver. Querem fugir para longe nas asas do vento. Ficam livres da vida e presas da morte. Envergonham-se, mas não têm medo. Querem voar e sentir o que nunca sentiram. Como se pode sentir o mundo quando se está preso à vida? São folhas, algumas a avermelharem-se, outras a serem salpicadas de pequenos pontos amarelados e outras a quererem ansiosamente morrer antes do tempo ou marcar o início do novo tempo. Algumas folhas vêm atrás de mim. Correm. Param. Voltam a andar e os seus sons secos de lamúria ou de desencanto chamam-me a atenção. Paro. Olho para trás e elas param, não com medo, mas aflitas por não saberem para onde ir. Sons de brisa, sons de folhas secas a seguirem-me e sons de árvores desejosas de se despirem, sons dentro do meu silêncio. Têm s

"Escrever"...

Sinto uma sonolência matinal. Não é habitual. Não sei o que fazer. Apetece-me fugir. É normal. Fugir dos outros e fingir para mim. Escrevo, o que é natural, não para os outros, mas só para mim. Partilho ou não partilho? Hoje não me apetece partilhar com ninguém, hoje escrevo apenas para mim, não vá alguém ler o que é só para ti.