"Conselho"...


Estar sentado sozinho numa esplanada ao fim da tarde é aliciante porque permite conjugar muita coisa, o sol, a brisa fresca, os sons da água, o agitar da passarada, o coaxar das rãs e o silêncio dos humanos. Eis que alguém me cumprimenta. Não o vi chegar, mas a sua voz inconfundível, espécie de mel embrulhado em eterna malandrice, denunciou-o. Olhei e cumprimentei-o com prazer. Estava agarrado a um gelado. Parecia um puto. Apesar da proeminência abdominal, e do bigode e pera que começam a perder o grisalho, via-se que o saboreava com particular prazer. Olhou-me e atirou: - Um gelado! Tem que ser, apeteceu-me, estava em casa e disse para mim, agora, que não está lá ninguém, é a altura de comer um gelado. E a minha mulher também saiu. Um gelado não faz mal a um diabético, pois não, senhor doutor? - Ah! É diabético? Perguntei-lhe. - Sou! Mas não sou daqueles que tomam as injeções, como é que se diz? - Insulina. - Pois, isso mesmo. Não sou desses, eu sou um diabético normal. - Quais são os seus valores do açúcar no sangue? - Ah, não sei! - Não sabe?! - Não! O meu médico do fígado é que sabe. Vou ao hospital de meio em meio ano. Nunca mais bebi uma pinga de álcool. Se tivesse continuado já estava morto. - Pois estava, estava! - Mas quando lá vou pergunta-me sempre: - Então, trouxe aquelas coisas? Eu digo-lhe que sim mas não sei onde tem o carro. Então, dá-me a chave e depois vou colocá-las. Ele é um apreciador de bom vinho! Mas eu não bebo há muitos anos. Graças a Deus! Senão não estava vivo. Uma das mãos segurava o cone do gelado e a outra esfregava com ternura o hipocôndrio direito onde vive um traumatizado fígado. Ainda estive tentado a dissertar sobre o tema, diabetes, mas arrepiei caminho. A forma, delicada e até amorosa como dizia aquilo, inibiu-me de o contrariar. Estava tão entretido e a desfrutar com tanto prazer o raio do gelado que até o bigode grisalho ficou branco e mais limpo. - Este é o último deste ano. - Ah, então, já comeu outros? - Já! São bons. Eu estava em casa e deu-me uma vontade louca de comer um. Não resisti. Mas eu sou um diabético normal, senhor doutor. Não vale a pena ficar preocupado, pois não? A musicalidade da sua voz, que nunca perdeu ao longo dos anos, impediu-me de dizer fosse o que fosse, apenas fui obrigado a sorrir pela conversa e por me lembrar muitas outras que ainda registo. - Tenho que comer aqui sem a minha mulher ver. - Ai sim? Ela ralhava-lhe por andar a fazer asneiras? - Não! - Não?! Ora essa. Então, porquê? - Dizia-me logo, foste gastar 1,30 euros num gelado que dava para tomarmos juntos dois cafés. - Oh, não me diga que ela era capaz disso! - Ai não que não era! Sabe, senhor doutor, é o que faz casar com uma mulher mais nova. Põem-se logo a mandar em nós! E ria-se com enorme satisfação à medida que lambia os beiços cheios de gelado. A conversa continuou durante mais um pouco, mas, discretamente, fiz com que terminasse de modo a permitir que pudesse lambuzar-se à vontade. Afinal, é apenas uma pessoa com "diabetes normal". Como poderia dar-lhe um conselho?

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