Saudades do pão...


De manhã cedo, assim que ouvia a buzina da bicicleta a tocar insistentemente, abria de imediato a porta e via a máquina com duas largas anquinhas de verga, tapadas com um pano branco, estacionada junto ao muro. Quando o padeiro destapava os cestos, um cheirinho quente e saboroso a pão fresco invadia subitamente o terraço, perfumando o nevoeiro ou o fresco matinal. Pegava num papo-seco, estaladiço e meio oco. Corria para casa e barrava-o com manteiga, que se derretia deliciosamente em contacto com as paredes ainda quentes, seguido de sôfrega ingestão, desfrutando a saborosa gordura embrulhada na doce textura do trigo, sempre acompanhado do café fumegante de cevada, porque isso de beber leite causava-me enjoos. Ala que se faz tarde, mas mesmo assim ainda levava mais um para comer a meio da manhã na escola. Quando ia comê-lo já estava mole, meio esmagado pelas tropelias, e frio. Ao abrir a saca, os outros meninos olhavam para mim. Via que o cobiçavam. Perguntava se queriam trocar o que traziam pelo meu pão com manteiga, mas antes tinha de saber o que tinham. Alguns não traziam nada, outros mostravam grossas fatias de broa, escuras, em que uma ou duas pequenas sardinhas rançosas, muito amareladas, destilavam um líquido que amolecia a dureza e a secura da fatia; quando as via nem hesitava, toma lá e dá cá. Que coisa mais saborosa. No espaço de duas horas apreciava as texturas e os sabores do alimento mais nobre da espécie humana, o verdadeiro símbolo da vida, desde sempre incorporado em inúmeras práticas desde as pagãs às religiosas. À hora do almoço, houvesse o que houvesse, o sabor da comida era refrescado umas vezes, e condimentado outras, graças às pequenas porções de broa de milho, trigamilho, pão de centeio, pão branco ou o delicado pão espanhol que ia metendo na boca. O que interessava era que o pão estivesse presente, sem ele a refeição perdia o interesse, e eu o apetite. O meu lugar, mesmo que nunca fosse o mesmo, era denunciado pela presença de migalhas. O lugar que apresentasse mais migalhas era considerado como o meu. - Onde está o pão? Recusava-me liminarmente a prosseguir o ato de restauração sem a sua presença. À tarde, depois das aulas, aparecia novamente o padeiro que enchia um enorme tabuleiro de latão com os papos-secos. Quentes, estaladiços e meio ocos. Durante as brincadeiras e correrias, sempre que passava por aquele altar de prazer, sacava um sem necessidade de o rechear fosse com que fosse. E os dias iam passando, sempre em redor do pão, umas vezes a seco, outras recheado de marmelada ou doce caseiro, muitas vezes com manteiga, algumas vezes numa estranha mistura de manteiga e açúcar amarelo, um néctar de prazer e fonte de energia necessária às múltiplas tarefas de qualquer criança. Às escondidas também sabia mergulhar bons pedaços em malgas de vinho com açúcar, às descaradas inebriava-me com grossas fatias de presunto que se revoltavam com denodo contra os meus pobres dentes, e só através de bons pedaços de pão é que conseguia engolir. Muitas foram as tardes em que ia ver cozer as broas no forno comunitário, e outras tantas ver como amassavam o pão e o coziam na padaria, sempre  auxiliado por práticas religiosas com complexas orações, pedidos de bênçãos e feituras de cruzes, numa constante realidade que, momentaneamente, cortava as bizarrias e as típicas conversas marotas. Pão, sempre o pão da vida, o pão que mata tudo, a fome do corpo e a fome de alma. Um passado rico, cheio de pão e cheio de vida. Uma saudade louca em apreciar o calor do divino sol. Sempre que posso deixo-o derreter em pequenas gotas de prazer entre as minhas papilas escolhendo as melhores para que, através delas, viaje pelo meu passado e pelo universo desconhecido, a lembrar um útero ávido de saborear a presença de uma nova vida. O pão sabe conduzir-nos aos melhores recantos da nossa existência. É pena que os deuses nos castiguem através do pão, porque são eles que o amassam, o diabo, que dizem que amassou pão, nunca fez isso, porque nunca o comeu...

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