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"Liga dos Maltrapilhos"



Não é difícil compreender a afirmação de que escrever é o mesmo que andar à procura de problemas. Seja, sempre é melhor do que estar quedo e mudo. Os “atrevidos” são, muitas vezes, direta ou indiretamente, convidados a não se pronunciarem sobre determinadas matérias ou problemas. Pessoalmente não tenho razão de muitas queixas, embora já tenha sido objeto de atenção por parte de alguns proselitistas, que, fiéis aos seus dogmas, pensam que são os únicos detentores da verdade. Quase que me apetecia contra-argumentar dizendo que cérebro e intestino andaram sempre ligados durante a evolução darwiniana; quem sabe se por isso não possamos explicar tais comportamentos. 
Face à situação em que vivemos não é difícil de verificar a explosão de um sentimento de revolta e de indignação. Paira algo de estranho em Portugal que merece ser analisado. O cidadão comum anda atordoado, sente que está a pagar uma fatura pesada, dura, inconcebível, provocada por uns sacanas que sabem “honrar” como ninguém as suas leis e princípios. Este fenómeno não é de agora, basta olhar para o passado, andamos sempre a repetir as mesmas cenas de uma tragédia sem fim; nunca mais somos capazes de aprender. Oh Lusa ingenuidade. 
Ramalho Ortigão, na sua notável obra, Holanda, consegue desenhar com precisão literária, e histórica, alguns aspetos que podem explicar o insucesso do nosso povo. Na altura em que Filipe II passou a dominar o mundo, acabando com o nosso, os holandeses emergiram com uma nação ímpar. É emocionante a forma como descreve o temperamento daquele povo e a formação da “Liga dos Maltrapilhos”, constituída por “indivíduos de primeira nobreza”, que resistiram ao rei espanhol, levando o país a libertar-se e a transformar-se numa pequena grande nação. Essa revolta foi das mais emocionantes que conheço. Nunca pensei que um povo fosse capaz de tamanha resistência, um povo notável que chegou a ser condenado à morte, sim, todos os holandeses, cerca de três milhões, foram condenados em 16 de fevereiro de 1568 pelo Santo Ofício à morte por heresia. Singularidade inquisitorial. 
O que é necessário para determinar um movimento revolucionário? Nada de complicado. “Em primeiro lugar, é preciso que haja uma ideia; depois, que essa ideia se traduza numa fórmula artística, que produza emoção e, por último, é preciso que uma espada dê o exemplo”. Esta é a receita de Ramalho Ortigão. No entanto, em Portugal, não sei onde param os “indivíduos de primeira nobreza”, não descortino ideias, nem fórmulas e nem vejo “espadas”. 
Os holandeses tiveram um Marnix e um Guilherme de Orange; conseguiram criar a “Liga de Maltrapilhos”, através da qual “nasceram”, vencendo o direito à liberdade de consciência e, consequentemente, transformando-se num povo de sucesso. E nós? Na altura afundámo-nos. E agora? Será que voltámos ao mesmo? Não seria possível criar uma liga de “indivíduos de primeira nobreza”, mesmo que não passem de uns maltrapilhos?

Comentários

  1. Identifico um actual grande problema na nossa sociedade, que faz emperrar qualquer processo de recuperação da crise.
    Esse problema reside no facto de as pessoas com voz, pessoas de quem uma boa parte da sociedade espera ver surgir a fórmula capaz de colocar tudo no bom caminho, que acomulam um grande conhecimento técnico e uma vasta formação académica, demonstram-se incapazes de os saber aplicar com eficácia, na solução dos problemas que afectam a sociedade.
    Ou seja; temos de um lado um forte grupo de pessoas sabe-tudo, pode-tudo, conhece-tudo, peritos em elaborar estudos estatísticos e precentuais, em interpretar tendencias de mercado, etc. mas sem capacidade para equacionar esse vasto conhecimento e aplica-lo de forma coerente e objectiva, tomando em linha de conta as características do nosso país, da nossa sociedade e de que forma seja possível articular todo o conjunto.
    Do outro lado temos um grupo ainda mais vasto de pessoas, que nada sabe para além daquilo que se habituaram a ouvir dos candidatos a governantes, quando em campanha eleitoral: que tudo lhes será oferecido de bandeja, caso esse candidato seja eleito.
    Em resumo: Uma classe demegoga, que tudo faz para alcançar lugares no governo, mas que depois, não quer sofrer o efeito do "veneno" que destilou.

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