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Olhos cinzentos azulados

Acordou sobressaltada. Um frémito doloroso invadia-lhe o corpo. Depressa verificou que um suor viscoso lhe arrefecia a alma, alagando ao mesmo tempo o seu corpo juvenil. Agulhas invisíveis de medo ameaçavam furar-lhe o baixo-ventre, a sua solitária ermida, que, não há muito, foi o altar do culto do amor, um amor físico, intenso, vulcânico.

Criada num ambiente de valores artificiais, disciplinados, subjugados a ordens de pureza capazes de escravizar muitas almas, mas não outras, estranhamente castigadas pelo criador a vegetarem neste mundo, depressa interiorizou os locais que lhe estariam reservados, o inferno ou o purgatório, mas nunca o publicitado e desejado céu. O medo controlava-a de forma angustiante, sabia que, um dia, a tentação lhe abriria os braços, ou não fossem os seus olhos a mais perfeita gazua que Deus mandou ao mundo para abrir os corações. Queria saber até que ponto seria capaz de se admirar com a sua obra, sim, porque um Deus solitário tem destas coisas, anseia poder espantar-se com a sua própria criação.

O fogo da vida começou a incomodá-la. Desejosa em o apagar aceitou outro fogo, o fogo do desejo, incendiado pelos seus belos olhos cinzentos azulados. Um tormento à procura do prazer. Uma alternativa enigmática, escondendo novos e dolorosos tormentos.

Os seus olhos, cinzentos azulados, foram desde muito cedo um santuário. Tinha medo deles, porque sabia o poder de atração que exercia sobre os outros. Evitava olhar diretamente quem quer que fosse, preferia as pedras das calçadas ou as ervas dos campos e aceitava alegremente qualquer convite que lhe permitisse manifestar vergonha, uma maneira de os esconder. Mas uma breve pausa era mais do suficiente para desnudar a sua beleza e sensualidade. Foi o que aconteceu. Numa desses interlúdios não conseguiu evitar a fúria da invasão do amor, amor que não conhece regras, nem obedece a qualquer vontade divina, porque é sinónimo da força capaz de desafiar o mundo e os deuses. Foi o que aconteceu. À noite, o medo de vir a ser testemunha da violação dos deveres terrenos começou a atormentá-la. À inquietude seguiu-se a ansiedade, à ansiedade o medo e ao medo o terror. Consumida por este, acordou com um frémito doloroso a invadir-lhe o corpo. A viscosidade do suor frio perturbou-a, nunca tinha sentido nada semelhante. Repulsa pelo corpo com medo da existência de outro dentro de si. A viscosidade, filha do preconceito e das regras do terror dos que pairavam à sua volta, começou a querer que apagasse o desejo de viver. Na noite seguinte, noite de lua cheia, vestiu-se de branco e ondulou pelos campos. Viu-se espelhada nas águas negras e frias de um poço. Por detrás, a lua aureolava-lhe os seus longos cabelos. Deitou-se com esta imagem, vendo os seus olhos cinzentos azulados cheios de lágrimas a misturarem-se com as frias águas do seu destino. Quando a encontraram, de branco, o seu corpo estava pintado de um estranho cinzento azulado como se os seus olhos a tivessem tingido de propósito num abraço protetor. Um ligeiro fio avermelhado destacava-se ao longo das suas coxas, o sinal combinado com a lua de que um novo ciclo estaria a começar. Não o sentiu, não o viu e o terror dos homens fez o resto. Quem ficou a perder foi Deus que mais uma vez se espantou, não com o seu poder, mas com o poder dos homens e mulheres que falam em seu nome. Deus não teve que lhe perdoar, hoje contempla aqueles olhos cinzentos azulados, calmos, sem corpo, sem amor, apenas um olhar triste desejoso de continuar numa senda sem destino.

Deus não sabe o que fazer.


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