O archote

Semana Santa de 1959. Naqueles dias as quintas e as sextas-feiras eram muito aborrecidas, não se podia fazer nada, nem mesmo brincar. Como não tinha com que me entreter, acompanhei um funcionário da CP até uma pequena horta não muito distante da estação, junto à linha do Dão. Uma tarde muito triste, revestida de nuvens fenestradas por belos raios de sol, os quais desenhavam uma espécie de coroa ou de aura que os santos orgulhosamente são obrigados a ostentar. O que eu queria era divertir-me com os meus amigos, mas não nos deixavam, era considerado uma falta de respeito, chegando mesmo os mais velhos a advertir-nos de que nem se podia rir, uma grande chatice para um miúdo, porque quando não se brinca o tempo recusa-se a passar, o que era um verdadeiro tormento, e a procissão, o único divertimento que antevia para aquele dia, só teria início pelas nove da noite. Deste modo, aceitei o convite para ir até à minúscula leira. Sempre gostei de ver as pessoas a tratar das terras, do cuidado que tinham com as culturas e, sobretudo, com o regar. Fascinava-me a abertura dos pequenos regos e a colocação rápida dos açudes com um sacholada de terra, obrigando a água acastanhada a rodopiar segundo o capricho do agricultor. Como ninguém me estava a ver, exceto o funcionário, tirei um pequeno barco, verde e branco, de baquelite, do bolso dos calções, e coloquei-o nos canais vendo-o a deslizar com uma velocidade louca. Tinha violado uma regra, não se podia brincar naqueles dois dias, só no sábado. Enquanto o meu amigo retirava água de um poço com a cegonha, ia-me fazendo perguntas sobre o significado do dia. Eu respondia conforme sabia, pouco. Então, explicou-me o que tinha acontecido há muitos anos, a última ceia, a traição do Judas, a via sacra, o calvário, a morte de Cristo. Eu ia ouvindo, mas não apreciei muito, isto de fazer sofrer alguém e matá-lo, e ainda por cima o Filho de Deus, causava-me estranheza e muita confusão. Não comentei nada e nem pedi explicações, porque sempre que fazia, já sabia que ia ter problemas. Como continuava calado, perguntou-me se já tinha começado a dar a doutrina. Disse que sim; queria saber onde é que eu ia. Não estive para aí virado e comecei a contar as horas que estavam a dar naquele momento na torre que ficava ao longe.
Já sabes ver as horas num relógio de bolso? Sei. Então diz lá, quando o ponteiro pequeno está no seis e o grande no dez, que horas são? Seis horas menos dez minutos. E se eu te disser que são dezassete horas e cinquenta minutos? É mais complicado. Mas são seis menos dez da manhã ou da tarde? E a conversa à volta das horas fez-se durante algum tempo. Tirou o seu relógio do bolso e treinei durante um bom bocado sobre como dizer as horas. Não tens relógio? Não, mas já me prometeram um, de pulso. As seis da tarde fez-se sentir, ecoando com mais intensidade do que é habitual, prenunciando chuva e recordando que teria de ir para casa o mais depressa possível, porque tinha de ir a pé até à vila, que distava mais de um par de quilómetros por atalhos. Disse-lhe tinha que ia na procissão. Ai vais? Gostas? Gosto, pois, já fui das outras vezes. Até parecia que era muito experiente. Mas desta vez vou levar um archote. Archote? Não és pequeno demais para isso? Não senhor, os meus amigos também vão levar este ano. Então, vai para casa, senão não chegas a tempo. Corri, ansioso de poder concretizar o meu sonho de substituir a tradicional vela, enfiada num copo de papel para evitar que se apagasse durante o percurso, pelo archote. Com o archote as coisas eram diferentes, fizesse ou não vento, ardia sempre com uma chama imponente, refulgindo, iluminando e dando vida ao Cristo, fazendo projetar a sua sombra fantasmagórica pelas paredes das ruelas. O cheiro da resina impregnava a atmosfera e o trepidante ruído do archote a arder competia com o som fúnebre do tocador do bombo que marcava a cadência dos participantes. Cheguei muito tempo antes do início, depois de um rápido jantar, com o objetivo de conseguir o meu archote. Na sacristia da igreja, encostadas às paredes viam-se dezenas de tochas resinosas. Uma delas seria para mim, pensei. Entretanto, lentamente, a igreja começou a encher-se de pessoas mudas, de semblante triste, como se tivessem perdido um ente querido. Eu não entendia bem aquela tristeza, pois os Cristos, um com o madeiro às costas e o outro deitado no cacife, estavam todo o ano na igreja sem que ninguém lhes ligasse, e agora é que mostravam pena. Era a semana em que iam dar uma volta pela vila acompanhados de uma apreciável multidão. Chegou o momento de distribuir as tochas e eu coloquei-me na fila, mas não me deram nenhuma. Perguntei por que razão não tinha direito. Responderam-me que eu vivia na Estação. Defendi-me e argumentei que tinha nascido naquela rua a pouco mais de uma centena de metros e que tinha vivido ali até o ano anterior. Mas nada, ostensivamente, os jovens mais velhos recusaram novamente lançando-me um olhar de desprezo acompanhado de sorrisos malignos. Ainda pedi ajuda aos mais velhos que andavam nos preparativos finais, mas ignoraram celestialmente a minha pretensão. Uma tristeza profunda invadiu-me quando verifiquei não haver mais nenhuma. Até ao momento da partida ainda alimentei a esperança de encontrar um archote perdido naqueles cantos. Recordo-me de ter pedido ao Cristo que me arranjasse um, que me pudesse dar a alegria de o transportar e de O acompanhar. Não me ouviu. A procissão começou a organizar-se e eu incorporei-a, não junto ao Cristo, que ia acompanhado por muitos jovens, mas mais atrás, entre as mulheres e as beatas, com as suas velas bruxuleantes, e cabeças cobertas por véus negros. Anda marchei durante algum tempo, até entrar no amplo espaço do Rossio, onde pude ver a parte da frente a entrar na estreita ruela em direção à Ponte da Praça. As chamas amarelas, acompanhadas de algum fumo negro, elevam-se nervosamente no ar originando, no silêncio da noite, um quadro fabuloso, um perfeito noturno. A tristeza tomou novamente conta de mim obrigando-me a deixar a procissão. Assim que vi o Cristo a desaparecer na descida, rodeado pela auréola das chamas, fui para casa dos meus avós. Deitei-me e nunca mais participei em qualquer procissão.
Ouço-a neste momento a passar perto da minha casa. O som cadenciado do bombo é perfeitamente audível, o mesmo de outros tempos. Presumo que já não devem levar archotes. Não lhes fazem falta, mas a mim fez-me.

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