Coletânea III

História de um dia poderia ser o título de uma história desconhecida que quis escrever ao fim de uma manhã. Senti necessidade de ver as palavras a nascer e dar corpo, forma e perfume a algo que desconhecia. Fiquei pelo título. Descobri-o agora, à noite, no meu recanto, onde sinto calor e alguma paz. O título que nasceu da necessidade de um vazio exige-me agora que preencha algumas linhas, linhas da minha vida, do meu pensamento e do meu sofrimento. Não lhe devia fazer essa vontade. Escrevo a pensar no ardor que senti quando vi algo que não esperava. Um tremor de angústia abalou-me por momentos. Aguentei o embate, o medo, a suspeita, a inquietação e um mar turbulento de emoções explodiu na minha mente. É difícil aguentar certos embates mesmo que não correspondam à verdade. A simples suspeita inquieta o mais bravo dos bravos. Sofre-se antecipadamente como a querer mitigar um eventual sofrimento do futuro. Ser humano é a capacidade de prever a dor e o sofrimento, como se fossem as únicas e verdadeiras certezas da existência. Às tantas até são, mas para isso é preciso viver. Depois, traçam-se rapidamente estratégias, abordagens e gasta-se o pensamento em soluções. Nada melhor do que procurar alguém que nos possa ajudar e orientar. Existem, e ainda bem, porque confortam e dão carinho. Em pouco tempo consegui a ajuda necessária. Com o avançar da tarde uma sensação de sossego começou a invadir-me. Um suave conforto limou as arestas da minha apreensão, provocando a sensação de que há sempre solução e, por vezes, o que é o mais certo, nem deve haver problema de maior, no fundo apenas a descrição da aflição de alguém que tem medo de perder um coração. Amar é sentir medo da perda de um ser em vão.
Muita coisa foi feita, exames que levantaram suspeitas obrigaram a realizar outros. A rapidez não elimina a angústia, apenas a modifica. Não se viu nada de maior o que aliviou o tormento que percorria o abdómen, aquela sensação estranha de andar no ar ou a sentir o devorar de vísceras inquietas.


Apesar de se terem passados vários dias, a expectativa de conhecer outros exames não perturbou o dia-a-dia, confiante de que a ausência de sintomas e de má notícias fossem uma garantia da paz desejada. Mas não é bem assim, ao receber o telefonema descortinei de imediato que algo de problemático estaria a chegar. Afinal, um dos exames mantinha-se anómalo, confirmando a hipótese incial. Uma sensação de angústia fez estremecer o meu corpo. Tive alguma dificuldade em controlar essa irritação interna. A conversa agradável que estava a ter com um doente, em que já metia a filha e os netos do grande matemático Pedro Nunes, que foram detentores de uma quinta perto de Coimbra, teve de ser interrompida de forma suave sem que transmitisse preocupação de maior face ao telefonema acabado de receber. Consegui manter uma atitude o mais normal possível e dar por terminada a consulta. Outros vieram a seguir com os seus problemas e inquietações, que esbarraram nos meus. Manter uma atitude profissional perante uma apreensão que queima a alma e que é capaz de escurecer de dor o futuro é muito complicado. Os relâmpagos de mal-estar martirizavam-me a todo o instante e as despedidas com desejos de um Feliz Natal apunhalavam profundamente o meu ser. Perdi o interesse pelas leituras programadas e quis esquecer o dia, mas o dia teimava em não me largar. 
Tive de telefonar aos filhos de forma a ficarem a saber o que poderá acontecer e o que se tem de fazer nas próximas semanas. Queriam certezas, queriam explicações, mas tive de contornar as conversas e ser muito cuidadoso, porque ainda não se sabe de concreto o que é que irá aparecer. Não quis angustiá-los, mas não tive outra solução.
Regressei a casa, e quando apareceu, sem dar muita importância ao assunto, fiquei sentado a escrevinhar ou a ler qualquer coisa no tablet, disse-lhe que tinha de fazer um novo exame no princípio do ano, por causa de uma análise que estava alterada e que tinha comprovado a mesma realizada duas ou três semanas anterior. Olhou-me, ficou apreensiva, o que é natural, dizendo, o que é me vai acontecer, só me faltava mais esta. No meu aparente desprendimento disse-lhe que era natural e que já agora devia fazer os exames necessários. Lembrou-me que nunca mais tinha sentido nada, como a querer mitigar a sua angústia. Esteve calada por breves segundos. Subitamente, questionou-me por que razão não tinha ido até ao Buçaco ler. Uma pergunta feita com o propósito de saber a gravidade da situação. Se eu não fui é porque estava preocupado e se estava preocupado era porque a situação não abonava nada de bom. Conhece-me bem. Já tinha previsto esta pergunta e a resposta estava na ponta da língua. Disse-lhe que não tinha ido por causa da filha que me pediu para fazer-lhe o penso e que estava a chegar. Engulio-a. Vi que sim. Também a conheço bem. A combinação da resposta já tinha sido feita com a moça que, passados poucos minutos, entrou em casa.
Ao jantar tentou esclarecer o que se passava. Tive que lhe explicar sem a inquietar. É difícil viver na incerteza e na necessidade de tranquilizar quem mais gostamos. Conversas simples conseguem desviar a atenção e propiciar algum prazer. Foi o que eu fiz, foi o que fizemos, uma espécie de duplo efeito, amenizar a tensão de ambos, a tensão de quem desconhece o que tem e a tensão de quem tem medo do que conhece.

Aproveito a noite para aquecer o corpo e a alma. Tento transformar a dureza e o frio da noite de inverno num delicado momento de prazer sem esquecer aquilo que não quero ver.

Tentei escrever para os outros, interrompendo este meu escrito, que é só meu, e meu ficará até que um dia o liberte ou me libertem.  
Quis escrever, mas fiquei-me por estas palavras, que saíram sozinho dentro de uma caverna que me esconde os seus segredos.

Escrever é a melhor forma de esquecer, melhor do que beber. 
Escrever é viver. 
Escrever é procurar ver a alma de um ser a sofrer. 
Escrever é tentar saber onde paira a tranquilidade do prazer. 
Escrever é esconder o medo de morrer. 
Escrever é viver.

Deitei-me tarde nessa noite, esperando que o cansaço me tomasse de assalto a fim de mergulhar no silêncio do sono. Tive medo de adormecer, tive medo de sonhar, tive medo de durante a noite acordar. O calor tranquilizou-me e as lembranças tornaram-se mais suaves. Pela cabeça passou tudo, o passado, o presente e a incerteza do futuro. Imagens, sons, frases, por vezes desconexas, sem sentido, absurdas, reais, fictícias, tristes, quentes, frias, numa amálgama sem sentido, mais próprios dos sonhos do que do estado de vigília. Saltava entre as imagens, os sons e as imagens com a querer fugir do perigo e encontrar ou escolher as que mais paz me ofereciam, um jogo sem regras, sem sentido, apenas tive a certeza de querer fugir ao destino e esquecer-me de tudo o que poderia alcançar. Lembrei-me da dificuldade que teria em cumprir com as minhas obrigações profissionais, porque trabalhar com a mente é algo de complexo e facilmente entra em conflito com o sofrimento. No entanto, recordo ter passado, outrora, por situações muito graves, e consegui manter a minha atividade, ensinando, pesquisando, numa atmosfera de dor extrema, quase que diria excruciante e, mesmo assim, consegui. Uma dualidade que me carateriza, querer fugir das obrigações e conseguir cumprir com determinação e profissionalismo. Espero continuar a conseguir.
Sempre que a angústia queria manifestar-se, conheço-a muito bem, começa a rondar o umbigo e a revoltar as entranhas, metastizando-se em poucos segundos pelo corpo como a querer sair pelos poros num choro de suor convulsivo, começava a dizer-lhe para estar quieta, que não me incomodasse o corpo, que me deixasse em paz. Consegui que me ouvisse, uma, duas, várias vezes, porque é obstinada, louca e imprevisível.
Deixei-me arrastar pelo tempo sem me levantar. Adotei esta atitude para poder saborear o conforto e o calor do descanso do corpo que se transmitiam em pequenas ondas até à minha mente. Ouvia na rua os sons de uma chuva intensa, escura e fria, em sintonia comigo, pensei. Talvez.  A véspera de Natal ofendeu-me mais uma vez, fazendo com que esquecesse os dias mais belos da minha infância.  Há rituais a cumprir e crianças a respeitar. Vou cumprir e respeitar, tentando retirar algo de doce, não para o corpo, que está interditado de os receber, mas para a mente para evitar sofrer. Vou tentar cumprir e respeitar.

O dia continuava chuvoso, invernia das sérias. Fui buscar o meu pai. A viagem foi atribulada, árvores caídas, lagos perigosos, pedras desprendidas das arribas e acidentes obrigaram-me a focar a atenção nos mil e um cuidados a ter nestas circunstâncias, o que me motivou, aparentemente, algum descanso. O tempo não esteve pelos ajustes, zangado com a vida, mais do que eu, mostrou-me na sua violência e desespero uma beleza que acalma, obrigando-me a refugiar e a desejar. Foi o que eu fiz, refugiei-me nos meus pensamentos e desejei ignorar certos momentos, aguardando que o tempo passasse para comemorar a consoada e pensar em mais nada.

Noite de consoada. O jantar encheu as medidas e o calor do vinho fez o resto, abriu o abcesso da mente e expulsou a matéria putrefacta do sofrimento. Um calor suave invadiu o corpo como se fosse a alma do amor, louca, a correr num desatino, cantando e dançando de prazer. A noite, alegre e transmutada em ouro de felicidade, saltou de satisfação afastando os fantasmas da aflição. Soube-me bem, não vou esquecer o doce e suave conforto de uma noite construída à sombra de Belém. 
O momento chegou, a fantasia despertou e as crianças explodiram em alegria ao verem o Pai Natal de raspão a fugir como lhe compete. Antes, o discurso da Leonor encantou e espantou. Dissertou sobre o Natal, sobre as prendas, sobre o Pai Natal que não pode desaparecer, falou da terra, falou do ambiente, falou do chocolate que deveria ter tomado por causa do frio, sempre de frente, agitando as mãos, com as faces rosadas de excitação, qualquer coisa de anormal para uma criança de cinco anos. 
O ritual manteve-se e a iniciação das crianças em matéria de fantasias manteve-se, criando quadros e mundos para um dia serem recordados. Nessa altura, em que o sofrimento lhes trará o sabor amargo da existência, as dores serão mitigadas pela recordação destes momentos. Uma alegria vivida com intensidade para que um dia possam sentir-se um pouco mais confortáveis. Hoje foi a noite em que receberam um outro tipo de prenda, não a viram, mas, no futuro, irão deliciar-se com um forte e eficaz analgésico para as dores da alma. Só tem de o guardar. Nunca se gasta.

Manhã de Natal passada numa modorra agradável, sem compromissos. Procurei num jornal se um conto sobre esta época tinha sido publicado. Respondi há semanas a um convite aos leitores para enviarem contos sobre esta época. Recordo que diziam que tanto podiam ser alegres como tristes. Fui buscar um que tinha escrito há algum tempo, um conto de verdades transformadas em fantasias, em que a felicidade, subjugada pelo sofrimento da vida, consegue sempre manter-se à tona recusando-se a desaparecer. Um lenitivo que merece ser acarinhado. Fiquei agradado pelo "feito". Só espero que tenha conseguido transmitir alguma esperança e felicidade a quem o leu.

"Fantasia de Natal"

O Natal é um período de apelo ao melhor que há em cada um de nós. É objecto de atenção e de inspiração para diversos intelectuais, poetas, pintores, músicos, escritores, religiosos e cidadãos anónimos.
Quem não tem recordações de Natal? Eu tenho. A mais velha reporta-se à primeira vez que tive a noção da festa. Tinha uma árvore enfeitada, acompanhei todos os passos festivos e ouvi a promessa de que o Menino Jesus ia dar-me uma prenda!
– Prenda?! Quando? Quando? Eu quero vê-Lo!
– Durante a noite, não sabemos a que hora chega, são muitos os meninos.
Entusiasmado, nessa noite tive dificuldade em adormecer. De repente começo a ouvir falar alto dizendo:
- É Ele! É Ele!
Levantei-me a correr para O ver mas nada! Olho para a árvore e vi um lindo carro vermelho. Afinal tinha estado mesmo ali! Fiquei deliciado com o raio do carro que andava assim que se lhe dava corda. Foi pena não ter visto o Menino Jesus. No dia seguinte, na Igreja da Misericórdia, dei-lhe um beijo e agradeci-lhe o lindo carro vermelho.
Nos anos seguintes ansiava por este período, o mais belo do ano. No entanto, comecei a reparar, após o regresso à escola, que muitos meninos não recebiam prendas, quanto muito um saquito de pinhões, de nozes ou de passas. Para mim tratava-se de uma situação muito intrigante. Perguntava lá em casa por que razão muitos meninos não recebiam prendas. As respostas não me convenciam muito, ficando com a suspeita de que o Menino Jesus não tratava todos do mesmo modo, o que não era justo.
Numa manhã de Natal uma raparigona da vizinhança perguntou-me quais foram as minhas prendas. Eu disse e mostrei-lhe o que o Menino Jesus tinha dado. Ela riu-se e com uma satisfação danada começou a gozar-me dizendo que quem dava as prendas eram os pais. Quanto mais lhe dizia que não tinha razão, mais ela ria e sopeteava. Furioso, entrei em casa e perguntei como era! Acabaram por dizer que a rapariga, que ainda hoje, quando a vejo, me faz recordar a raiva do tal momento, tinha razão. Em sinal de protesto, não fui à missa e não liguei aos brinquedos desse ano.
Apesar de tudo, tive que me adaptar à nova situação e todos os anos vivia com intensidade este período. O que me custava mais era os que pouco ou nada recebiam. Em contrapartida, deixava que partilhassem dos meus brinquedos que acabavam por durar muito pouco tempo!
De ano para ano, a forma de encarar o Natal modificou-se sem perder de todo a fantasia criada em criança.
Histórias ao redor do Natal tenho-as muitas mas há duas que não consigo esquecer.
Numa noite de consoada, preparado para atacar a mesa, fui chamado para ver um vizinho. Assim que cheguei vi que algo de grave estava a acontecer. Deitado na sua cama e rodeado por muitos familiares, o maior tartamudo que já conheci até hoje, mas que afirmava que “até falava bem, o que lhe faltava era a pausa”, olhou para mim e tentou dizer qualquer coisa. Não conseguiu. Com um olhar sereno e um ligeiro sorriso nos lábios, apagou-se que nem um passarinho enquanto ouvia o último batimento cardíaco. Olhei para os familiares, fechei-lhe os olhos e voltei para casa. Ia a entrar quando ouvi alguém chamar-me. Parei e ouvi que uma tia velhota estava mal em casa do filho. Em poucos minutos estava ao seu lado. Assim que me viu, deitada no sofá da sala, disse:
– Ai Manelzito (era uma das poucas pessoas que me tratava daquela forma) estou a morrer!
Mas fez esta afirmação com muita ansiedade
– Ó tia, está cá agora!
Enquanto colocava o estetoscópio sobre o seu peito descarnado, recordei-me de que já tinha tido um enfarte e que padecia de angina grave. Assim que comecei a auscultação, agarrou-me a minha mão esquerda, repetindo:
– Olha, vou mesmo morrer.
Desta feita, fez a afirmação com muita calma e, passado algum tempo, não muito, o estupor do estetoscópio, pela segunda vez naquela noite, ouviu o último batimento de um velho coração. Fechei-lhe os olhos e regressei a casa. Era quase meia-noite, não tinha ceado, nem tinha apetite. Comi alguns doces e perguntaram-me o que tinha acontecido.
– Foram dois velhotes que adoeceram. É noite de Natal, emocionam-se e depois, claro, sentem-se mal.
A outra história ocorreu numa enfermaria de um hospital pediátrico. Uma das minhas filhas, com seis anos de idade, foi vítima de uma grave doença algumas semanas antes do Natal, tendo que permanecer bastante tempo no hospital, continuando ao longo de muitos anos a sofrer das sequelas da mesma.
Na noite de Natal, depois de consolar os outros filhos, desloquei-me mais a minha mulher à enfermaria. A quase totalidade das crianças sofredoras não tinham os pais ao seu lado, mas a atmosfera encheu-se de uma estranha magia com a cumplicidade das enfermeiras. “Alguém” bateu nas janelas da galeria, imitando o Pai Natal, e, logo a seguir, era quase meia-noite, distribuíram-se miminhos, prendinhas e doces, ignorando soberanamente as regras.
É comum ouvir-se que os mais belos e puros sorrisos são os das crianças. Mas naquela noite, os sorrisos das crianças tiveram um duplo e estranho encanto. As suas máscaras de sofrimento desapareceram, ao mesmo tempo que transmitiam uma sensação de paz e de serenidade muito difícil de explicar…
Nessa noite, consegui dormir, pela primeira vez nas últimas aterradoras semanas, com tranquilidade, graças à fantasia do Natal.
Enquanto colocava o estetoscópio sobre o seu peito descarnado, recordei-me de que já tinha tido um enfarte e que padecia de angina grave. Assim que comecei a auscultação, agarrou-me a minha mão esquerda, repetindo:
– Olha, vou mesmo morrer.
Desta feita, fez a afirmação com muita calma e, passado algum tempo, não muito, o estupor do estetoscópio, pela segunda vez naquela noite, ouviu o último batimento de um velho coração. Fechei-lhe os olhos e regressei a casa. Era quase meia-noite, não tinha ceado, nem tinha apetite. Comi alguns doces e perguntaram-me o que tinha acontecido.
– Foram dois velhotes que adoeceram. É noite de Natal, emocionam-se e depois, claro, sentem-se mal.
A outra história ocorreu numa enfermaria de um hospital pediátrico. Uma das minhas filhas, com seis anos de idade, foi vítima de uma grave doença algumas semanas antes do Natal, tendo que permanecer bastante tempo no hospital, continuando ao longo de muitos anos a sofrer das sequelas da mesma.
Na noite de Natal, depois de consolar os outros filhos, desloquei-me mais a minha mulher à enfermaria. A quase totalidade das crianças sofredoras não tinham os pais ao seu lado, mas a atmosfera encheu-se de uma estranha magia com a cumplicidade das enfermeiras. “Alguém” bateu nas janelas da galeria, imitando o Pai Natal, e, logo a seguir, era quase meia-noite, distribuíram-se miminhos, prendinhas e doces, ignorando soberanamente as regras.
É comum ouvir-se que os mais belos e puros sorrisos são os das crianças. Mas naquela noite, os sorrisos das crianças tiveram um duplo e estranho encanto. As suas máscaras de sofrimento desapareceram, ao mesmo tempo que transmitiam uma sensação de paz e de serenidade muito difícil de explicar…
Nessa noite, consegui dormir, pela primeira vez nas últimas aterradoras semanas, com tranquilidade, graças à fantasia do Natal."

Tranquilamente descansei sob o som da chuva que caía, silenciosa e fria, depois de um refeição agradável, pela qualidade e, sobretudo, pelo encanto de uma oração, a oração de uma família que se alimenta de histórias e que necessita de construir outras para poder alimentar a nova geração. Uma forma de manter viva a chama quente do coração dos pequeninos que um dia se alimentarão deste pão. Tudo tem de ser feito com amor, nada deverá ser feito em vão. 

A tarde passou sem dar conta. Adormeci e acordei ao som do bocejar do anoitecer.

Recordo que a noite se apagava da forma habitual, dura, pesada, sem sabor, porque, afinal, as noites dos dias de Natal são iguais às de outros dias. Subitamente, comecei a sentir as entranhas a remoer. Respirei fundo e tentei afastar o medo, não o medo da noite, mas o medo da vida. Em redor ouvia as conversas habituais, simples, despretensiosas, conversas de ocasião, soltas, à deriva do momento. O medo voltou a ameaçar-me, com olhar sardónico e livre da inibição imposta pelo espírito de Natal prestes a partir. Lembrei-me de escrevinhar, nem que fossem meia dúzia de linhas, o suficiente para ver as letras e as palavras a aparecerem com magia no ecrã. À medida que as ideias iam sendo desenhadas, senti um certo conforto, não que afastasse a angústia e o medo, mas foi o suficiente para me manter livre da escravidão das más ideias. Escrever tem esse condão, escrever é uma espécie de esponja que absorve qualquer tipo de borrão. Escrever é um mata-borrão dos maus pensamentos. Escrever ajuda e tranquiliza qualquer coração.

No conforto da sala, longe da realidade, mergulhado no prazer do silêncio, rodeado pelo calor do aparelho, e confortado por uma suave bebida, consigo viver o espaço sem tempo que só a noite sabe propiciar. Uma magia que gostava que nunca fosse interrompida. Um dos poucos momentos em que consigo libertar-me dos tormentos e saborear alguns belos pensamentos. A vida é o movimento mais estranho que existe, a vida é um movimento sem fim que nos convida a mergulhar nas suas águas profundas e frias, aquilo a que chamamos fim. Prefiro ignorá-las, gosto mais de nadar, com firmeza, com confiança, com desejo e esperança de chegar a uma praia onde possa repousar e respirar um ar sem dor, um ar como se fosse uma bebida cujo sabor me faça sentir o prazer do amor. À noite, no silêncio, preciso apenas de calor, do sabor de uma bebida e de sonhar com amor. Assim, consigo espantar e adormecer a dor.

A quadra festiva continuou no seu típico embaraço, conversas, belas palavras e desejos de feliz Ano Novo, entremeada de episódios e matéria para algumas histórias. Uma tentativa de acomodação, forçada e dolorosa, esteve quase a arrebentar. Estive mesmo prestes a sair do local e regressar a casa, sofrido e frustrado. O tempo deambulava no seu passo habitual, trôpego e irritante, a tropeçar em tudo o que encontrava. Não tinha nada para fazer. Um nada que transformei num pequeno texto devido a um episódio televisivo da manhã. Uma forma de afogar a minha tristeza. Subitamente tive de ver um capitão de um navio. Adoeceu, vinha do mar, de onde vêm os comandantes de navio. Trazia um senhor para ajudar a consulta. Mandei inscrevê-lo como mandam as regras. No corredor perguntei-lhe a nacionalidade. - Russian. Entrou sozinho. Problema nada de complicado, fácil de diagnosticar e bom de tratar. Mantivemos uma conversa cordial e relembrei a minha ida ao seu país há mais de vinte anos, numa época nada aconselhável. Concordou comigo e afiançou-me que agora era muito diferente. Fiquei com uma vontade louca de rever certas zonas, como as "cidades do anel de ouro". Quem sabe, um dia. Depois, a minha amiga, com os seus habituais carinhos, mimoseou-me à maneira, direta e indiretamente. Gosta de falar, sempre gostou e nunca vai parar. Ainda bem. Oferece-me de bandeja tantas histórias que não consigo aproveitá-las com propriedade. Gosto de as ouvir, gostava de as registar e até de as escrevinhar. Quem sabe, um dia.
Regressei sob a chuva cinzenta. Chuva feia. Céu feio. Condutores feios. A fealdade andou de mão dada na autoestrada e a toda a velocidade. Cheguei a sentir alguma ferocidade. Contive-me. 
Preparei tudo o que tinha a fazer e abalei para a terra. Levei o meu pai. Está velho. Envelhece de semana para semana. A cabeça funciona, o pior são as pernas que não respondem às ordens vindas do cérebro. Os seus rituais estão a acentuar-se, sinal de compensação das suas limitações, mais motoras do que cognitivas. Sinto, vejo e profetizo algo de normal. Estremeço perante pequenos sinais. Quando tal acontece a minha imaginação começa a criar cenários, e o que me passou pela cabeça não me agradou. Abanei os miolos, tentei desviar a atenção, chamei à razão coisas sem importância de forma a limpar aquilo que não quis pensar. O resto da viagem foi feito sem confusão. O jantar também não me perturbou, exceto no final, quando vi que a minha ideia estava a ser reforçada. Levei-o ao lar e fiz o que tinha que fazer. Nada de complicado. Ajudei-o em pequenas coisas, sem pressas, sem incómodos, apenas fiquei com a sensação do que é o torpor da velhice, que se acentua no silêncio da noite, não sei se é triste ou se é desejável. Não sei, sei apenas que, apesar de tudo, deve valer a pena desde que haja alguém a ter alguns cuidados connosco. Conforta, sem dúvida, conforta quem envelhece e quem deseja envelhecer. Quem sabe se um dia poderei ter este conforto. Pouco? Sim, talvez, mas sem angústia, sem solidão e sem medo. Chega? Não sei. Quem sabe se um dia saberei...

Uma manhã húmida e sem frio, com o sol a querer espreitar-me através de buraquinhos feitos na espessura de negras nuvens. Atrevido, pensei, mas também divertido, achei. Abalei com suavidade até ao local de trabalho. Um dia por ano vou até aquele espaço. Gosto. Gosto do silêncio e de sentir as almas que se passeiam presas à beleza e ao encanto da natureza. Sente-se facilmente as emoções do espaço e do antigo convento. Não assusta, pelo contrário, desperta e encanta qualquer um. Não é que ouço o rir juvenil de velhas monjas, até consigo ver as suas bocas desdentadas, que não as desfeiam apenas as humanizam. São alegres, despreocupadas, vivem em comunidade, longe das atribulações da vida, controlando os seus desejos e aspirações. Contemplam, oram, brincam e passam pela vida sem saberem que existem, nem o tempo as incomoda. Andam por aqui as suas almas. Não afligem ninguém, apenas confortam quem as sente, tal como faziam antigamente com a pobre gente. Quantas e quantas vezes não viram o mesmo que eu, num dia igual ao de hoje, manhã húmida e sem frio, com um sol atrevido a querer espreitar as suas travessuras através de pequeninos buraquinhos que só ele sabe fazer através das negras e espessas nuvens. Doçuras.

Passeei durante a tarde e fui ver algo que sempre quis, mas nunca tive a sorte de ver, um pequeno e bravo museu perdido nas redondezas, onde outrora floresceu uma bela e importante cidade romana, Bobadela. Fiquei satisfeito, muito mesmo, e que me inspirou para escrever um pequeno texto sobre a importância dos museus locais, verdadeiras salas de estar e de receber quem nos procura e visita.

"Um dos locais que frequentava em criança era a biblioteca-museu, não propriamente para ler livros, se bem que uma ou outra vez me sentava a uma mesa redonda para esse efeito. Ia àquele lugar para ver algumas peças que me seduziam, sobretudo armas velhas, lanças, frascos com serpentes e muito outros objetos antigos. Assustavam-me os gigantescos quadros a óleo que estavam logo à entrada, mas fechava os olhos e passava em frente. O Arménio mostrava-me tudo, inclusive um pequeno tesouro de velhas moedas romanas que tinham sido encontradas num sítio próximo. Recordo de as sopesar, eram belas, com cabeças de imperadores imponentes. Contava-me histórias, algumas mirabolantes e outras de assustar. Gostava imenso de ir até ao museu, via e fantasiava como só uma criança sabe fazer. Tenho tantas saudades desse tempo.
Recordo este episódio porque hoje, finalmente, consegui ver em Bobadela o museu. Perdi o conto às vezes que fui até esta localidade do concelho de Oliveira do Hospital, outrora uma importante cidade romana, para o visitar. Entrei e, simpaticamente conduzido por uma menina, defrontei-me com uma preciosidade difícil de traduzir em breves palavras. A casa onde viveu o General Gomes Freire de Andrade estava repleta de um riquíssimo espólio de arte e de peças diversas, muitas ligadas à etnografia e à história do município. O tesouro enche o mais guloso estômago da cultura. Comi, bebi, saboreei e entusiasmei-me com tamanhas iguarias. No regresso lembrei-me de outros museus da região, pequenos, mas soberbos no significado e na intenção. Preservam a memória e incendeiam a imaginação. O caso do museu do concelho vizinho, Carregal do Sal, é paradigmático do exemplo da cultura, do cuidado e do amor pelo passado, que estão sempre presentes nas vidas das pessoas. Considero esta devoção como uma das formas mais belas e superiores de respeito pela identidade de um povo, seja à escala nacional ou regional. Os museus não são meros depósitos de peças, são locais de convívio, de estudo, são a porta de entrada de uma povoação. Nos museus estão conservados objetos, todos com uma história, todos a fazerem história, todos ansiosos por parirem novas histórias. Respeito todos os povos e todas as localidades por onde passo ou visito, mas sempre que me deparo com estes cuidados, o meu respeito e admiração triplica, no mínimo, e faço tudo por voltar vezes sem conta para saborear e sentir tamanho prazer.
Olho para Santa Comba Dão e não vejo algo semelhante. Nada. Um nada que contrasta com o muito que já teve outrora onde permanecem muitas das minhas lembranças. Como gostava de as recordar no presente vendo os mesmos objetos, moedas, quadros, armas, punhais, lanças, frascos de vidro com víboras, todo um historial que poderia ser o núcleo de um museu capaz de atrair doações enriquecedoras do património do concelho.
Já agora pergunto, onde estão essas peças e objetos? 
A ideia do museu está aqui..."

À noite descansei ao sabor da chuva e do conforto do encanto de uma noite escondida. Escrevinhei o que sentia naquele momento. Quando o reler vou sentir o mesmo efeito e ver as emoções que nasciam ou morriam no meu peito.

"Enfartamento"
Enfartamento do estômago, enfartamento da vida.
Bebo um chá para o estômago e desenho um pensamento para a vida.
Foi o que fiz numa noite desenhada com o giz da chuva.
A chuva cai livre e feliz. Ouço-a a fugir pelas ruas, louca mas feliz.
A noite não geme. Tem medo da chuva. Esconde-se. Faz bem. Eu também me escondo.
Espero apenas pelo sono. Não vem, deve ter ido com a água da chuva. Pobre sono que se perdeu. E eu desejoso de cair nos braços do Morfeu.

O novo dia apareceu e a meio da manhã fui cumprir o ritual do café de sábado de manhã.
Fiquei na arcada, ao frio. Dentro do café não havia lugar e o ar estava irrespirável. 
Apeteceu-me escrevinhar. Não sabia o quê. Não tinha muito tempo, mas tive essa necessidade e acabei por saborear um pensamento do momento.

"Sábado de manhã. 
Último sábado do ano. 
Bebo um café ao frio. 
Vejo pessoas a entrar e a sair. 
Andam, falam e desejam votos de um bom ano. 
Todos esperam não ir ao engano. 
Restam-me o frio, a chuva e o desengano."

À noite, na tranquilidade do meu canto, e depois de escrevinhar outro tanto, um curto canto que passo a descrever, "Os dias são como as pessoas, umas vezes acordam alegres, felizes, bem-dispostos, capazes de vencerem o mundo e encherem de felicidade tudo e todos, outras não, outras vezes são o oposto, duros, pesados, sofredores, pessimistas, dolorosos e embutidos de uma tristeza mortal. Nem sempre o calor, o esplendor, a transparência ou a luminosidade são sinais de boa disposição, e o oposto é também verdadeiro, muitas vezes, sob a chuva, mergulhado num frio cortante ou estranhamente descolorido, podem ser fontes de inspiração e de alegria. Nunca se sabe como vai ser o dia de amanhã, só se sabe que vai ser diferente. Do mesmo modo que apreciamos a beleza de um novo dia, também o dia aprecia a beleza do nosso sorrir e sofre com a nossa dor. O que é que aconteceria se um dia, o novo dia visse todas as pessoas a sorrir? Seria o dia da "felicidade final", recebi, inesperadamente, um telefonema. Um telefonema de sofrimento. Deixo aqui o que senti. Não é que tenha descoberto que sou cristão, gosto é de aplicar os belos princípios do cristianismo, sem cinismo, apenas porque são justos e acalmam a dor de qualquer coração. Terá sido uma forma de oração? Não interessa, só sei que do outro lado a paz entrou numa agradável erupção.

"Uma noite inesperada. Um telefonema. Um pranto. Um sofrimento de alma. Princípios cristãos desrespeitados por quem se considera uma fiel seguidora. Impedida de conversar, de dialogar e de conviver com uma das irmãs. Sente a sua falta. Precisa do seu amor. Precisa da sua presença. Impedida de a amar, sucumbe num sofrimento de dor e de saudade ativado e exacerbado na época da família, na quadra do amor. 
Um telefonema. Um pedido de ajuda numa noite de descanso. Um conselho. Uma terapêutica. Uma ajuda para acalmar uma alma que entrou em erupção de dor. Não esperava. Não recusei. Fiz o que devia fazer e disse o que entendia. Disse-lhe que ninguém tem o direito de julgar quem quer que seja. Disse que devemos amar o próximo. Disse que cada um é livre de fazer o que quer, mas isso não impede de amar e de gostar quem quer que seja. Ficou tranquila. Fortaleci o seu ego. Arrefeci a erupção de dor. Fiz o que devia, tratei do sofrimento de alguém com palavras de amor. Uma terapêutica diferente, mas eficaz para tranquilizar a mente de um ser que é também gente. Amanhã vai vê-la, sem medo, confiante e segura de que quer o que a outra faça nada a impede de a amar."

Os domingos são talhados e vividos num ritual pagão. O almoço decorre numa localidade próxima, desde há muito tempo. Recordo o dia em que o encontrei. Depois de várias tentativas, todas frustadas, acabei por esbarrar naquele local. Depois, talvez pelas suas características muito peculiares, comecei a almoçar aos domingos. Não pela qualidade da alimentação, simples, nada de especial, mas pela fauna humana que ali se restaurava aos domingos. Hoje estava fechado. Fecharam a minha "caverna".

"Caverna"
O ritual foi criado de forma rápida. Surpreendeu-me, não pela qualidade da alimentação, nem do espaço, pouco cuidado a recordar velhos locais do passado, mas pela qualidade das pessoas, simples, espontâneas, criativas, com linguagem fechada aos nossos dias e vendo o mundo por cristais manuais e coloridos de épocas desaparecidas. Um local que me levava a voar nas conversas que ouvia a outros tempos e a outras épocas. Uma espécie de caverna, onde aprendia e desfrutava histórias e historietas. Acabei por registar em desenhos da minha memória muitas personagens. Aos domingos esperava-os ou encontrava-os. Seres que me inspiravam e divertiam. Com o tempo alguns iam desaparecendo. Talvez por terem morrido, talvez por não conseguirem deslocar-se ou por não terem dinheiro para pagar a refeição do almoço de domingo, talvez a única extravagância, que apesar de não ser dispendiosa, longe disso, começou a causar mossa nos bolsos pobres de gente pobre mas rica de sentimentos e de histórias. O declínio vinha-se acentuando desde há alguns meses, e o dono já tinha manifestado desagrado pela situação, dando a entender que o melhor era voltar a emigrar. Não dei a importância devida, embora me tenha pedido há semanas o meu telefone para avisar de qualquer contratempo nesta época do ano. Pensei que deveria ser para descansar alguns dias. Hoje era dia de ir à minha "caverna" conviver com personalidades retiradas diretamente das profundezas do povo, rico, único, fonte de inspiração e cheio de histórias, que contavam e partilhavam alto e em bom som de mesa para mesa sem receio de serem ouvidos, pelo contrário, até ficava convencido que gostavam mesmo de serem ouvidos. Eu gostava, e eles já deveriam ter percebido a minha atenção, embora nenhum tenha lido o que escrevi sobre eles. Hoje fui à "caverna". A porta estava fechada com um aviso, "encerrado por tempo indeterminado". Fechou-se um portal para o passado. Vou deixar de ouvir e de conviver com gente do povo, gente interessante e rica em emoções, histórias e interpretações.
Eu sei que a crise é violenta, mas chegar a este ponto violenta-me também, porque perco um precioso bem. Nem um espaço pobre, simples, pouco cuidado e barato escapou às garras de miseráveis que a esta hora devem estar a conspirar em luxuosos restaurantes desfrutando opíparos repastos e continuando a ofender pobres humanos.
Para onde terão ido os donos? Reemigraram com toda a certeza...

A tarde de domingo teimosamente quis continuar vestida de nevoeiro. Demorou muito para que o sol se espraiasse vestido de um manto azul. Acordou tarde e adormeceu cedo. A viagem de regresso fez-se com normalidade, com momentos de belos nevoeiros, opaco e luminoso ao mesmo tempo, e quando o sol se baixava para apreciar a beleza do rio as águas devolviam-lhe as carícias com uma tonalidade ainda mais brilhante. Um raro momento em que o mundo deixou de ter cor, mas nem por isso deixou de ser belo, muito mais belo do que é o habitual. A bela ausência de cores, mergulhada no frio silencioso, encantava-me. Percebi que se tratava de um sonho esperançoso. Registei este quadro mas não o comentei na altura, faço-o agora, talvez por compreender que o que vi eram corpos de alma frias que se abraçavam para aquecer o sol e tranquilizar as lágrimas de dor que corriam sob os seus belos mantos de nevoeiro. Depois via-as a subir de braço dado em direção ao céu azul. Foi então que os meus olhos foram ofuscados por mil sóis. Almas livres, quentes e brilhantes que se esqueceram que foram gente. 

Penúltimo dia dia ano. Nada de anormal, exceto alguma confusão motivada pela mudança do calendário. Tive que ajudar algumas pessoas, fui a um velório, algo que me entristece pela dor que vejo e sinto em seu redor. Neste caso em particular a natureza mostrou a sua verdadeira face, a crueldade, matar uma filha sob os olhares dos pais. Dói, imenso. A imagem da verdadeira ignomínia da vida, quando os filhos antecipam sua partida, desfazendo as almas dos progenitores. Tolero, compreendo e aceito muitas coisas, mas esta não. E não há vontade ou explicação, seja terrena ou divina que justifique tamanha tragédia. O momento em que deus ofende e despreza a sua criação. Não me importa que tenha ou não significado, não acredito na justeza deste tipo de ação, nem desta nem nada parecido. Este episódio alimenta a minha justificação em não querer e nem poder aceitar tão inumana destruição. Olho em redor à procura de uma consolação. Vejo o rosto inexpressivo e amarelo de um sonho imensamente profundo. Ainda consegui ver muito sofrimento a desvanecer-se na tranquilidade infinita do desconhecido onde a paz vive sem medo e sem dor. Estranho, vi o elevar de belos sentimentos e uma inveja cheia de medo apoderou-se-me de mim, inveja da paz e medo da dor.

O ano está a terminar ou a fingir que termina, o tempo mente com quantos dias tem de existência, ele sabe que não acaba nada, nem nada começa, tudo permanece sob a sua vontade e desejo, o tempo não gosta de comemorar nada, apenas finge para se deliciar com o nascer de falsas esperanças e com a certeza de poder viver à custa de todos. O tempo não quer morrer, o tempo tem medo de quem morre, porque quem morre deixa de acreditar nas falsas esperanças que promete a todo o instante. O tempo, afinal, não é mais do que o veneno da vida. Para quê comemorar um falso tempo, é a mesma coisa que adorar falsos deuses, como se houvesse deuses ou tempo verdadeiros. O que é que fariam um e outro se nós, pobres humanos, não existíssemos? Não existiam, como em tempos não existiram. Um dia deixarão também de existir. E depois tempo?

Custou-me a levantar. Sentia-me bem e mesmo o raio do sonho, nada agradável, não foi suficiente para me perturbar, até gostava de saber como é que iria terminar. Enfim, um texto desenhado e não acabado. 
Cedo. Cedo demais para um dia que devia ser de folguedo. Abalei em direção à terra para cumprir com as minhas obrigações. Ir ao tribunal como testemunha de um caso em que não fui achado nem ouvido. Uma singularidade portuguesa. Não é a primeira vez que me acontece. Cheguei. Tomei o meu café e entrei no palácio. Esperei. Continuo à espera. A hora marcada, a meia das nove, já foi dada na torre mesmo ao lado. O átrio está vazio. Não vejo ninguém. Não acredito que a Justiça esteja ainda a dormir. Recuso-me a aceitar isso. Não vejo ninguém. Será que vim de longe para isto? Continuo à espera. Bom, vou perguntar. - Não. Hoje não há nada. Trouxe a convocatória? - Não. Deixei-a em casa. Diligentemente começaram a ver o que é que se passava e ao fim de pouco tempo informaram-me: - É no dia 31, de facto, mas 31 de janeiro. - Oh! Não me diga! Não é que tenha arranjado qualquer trinta e um, mas fiquei desolado por eu ter roubado a mim próprio uma manhã de descanso. Sou mesmo um tanso! Ora esta. E já estava para culpar a Justiça. Vim ao engano no último dia do ano.

Regressei a casa sem azedume e sem desconforto. O vazio da manhã foi preenchido com uma visita eternamente adiada.

Há muito que tinha pensado em subir a encosta e visitar a aldeia como deve ser. Uma espécie de cascata, íngreme, demasiado, e imprópria para pessoas de idade ou que sofram de algum tipo de insuficiência orgânica. Ao longe, sobretudo de noite, encanta qualquer um, quando, ao dar a curva apertada, nos deparamos com tão belo espetáculo. Ao perto desencadeia alguma tristeza pela degradação e despovoamento. Passei milhares de vezes ao seu sopé e já fiz uma tentativa, falhada, de subir a encosta de carro. Um dia hei de visitar esta aldeia. Pensei múltiplas vezes. Hoje foi o dia. Estacionei o carro e pus-me a subir a rua tortuosa e íngreme a ponto de por pouco não ter botado fora os bofes. Uma tristeza. Casas degradadas, velhas e sem gente. Ouvia ao longe alguns cães e ao perto os pássaros. Contei três chaminés que deitavam um fumo branco que se espreguiçava no ar a testemunhar dores reumáticas. Nada. Ninguém. Subitamente vi um cão pequeno num varandim com ar espantado para mim. Ao lado vislumbrei cabelos brancos e em desalinho de uma velha. Debruçou-se e cumprimentei-a: - Bom dia, minha senhora. - Bom dia, bom senhor. Não parei para conversar. Continuei a subir no deserto do velho casario. Ouvia cães, uns à ladrar e outros a uivar, e ainda vi alguma roupa a enxugar. Andei, vasculhei e fiquei com a sensação de contemplar uma aldeia moribunda. Passei por um senhor e após os bons dias pusemo-nos a conversar como velhos conhecidos. Estes espaços, rurais, pobres e despovoados têm esse condão, fala-se de imediato com a maior naturalidade do mundo, como se uma amizade escondida emergisse das pedras negras e tábuas partidas. - Já falta pouco. Cada vez há menos gente. Daqui a vinte anos está morta. - Uma morte lenta. Disse. - Lenta, mas segura. Não há gente. Continuei naquelas vielas, ruelas, escadas, tortas, feias, sujas de tempo, sem almas e sem gente, apenas se ouvia alguns cães, que assim que me viam se calavam de imediato, talvez surpreendidos pela presença de um estranho.
Fiz o percurso inverso, com muito cuidado, porque descer aquela encosta molhada da noite não é tarefa fácil. Arranquei um varapau de um molho perdido e esquecido junto à ombreira de uma porta morta e escancarada e apoiei-me nele, parecendo um vagabundo ou um candidato a peregrino. Ao terminar a descida, uma velhota, de canadiana, saía de casa. Ao pressentir a minha presença virou-se, mas antes colocou a sua mão esquerda na parede da casa para se apoiar. Cumprimentei-a com um natural, bom-dia minha senhora. Replicou: - Bom dia. Benza-o Deus.
"Benza-o Deus"! Há muito que não ouvia esta expressão. Sorri e parti para uma curta conversa. - Tem de ter cuidado ao descer. - Pois tenho, a calçada está muito escorregadia. - Mora aqui há muito? - Desde que nasci. - A aldeia está muito abandonada. - Pois está. As pessoas vão-se embora, uns desaparecem, outros casam-se, outros juntam-se e o resto morre. Seja o que Deus quiser. - Olhe, vá devagar, porque pode cair. - Vou, pode estar descansado, bom senhor, eu vou a casa da minha comadre que está sozinha e doente. - Olhe, um bom ano para a senhora. - Obrigada bom senhor e que Deus o acompanhe.
Um curto diálogo a testemunhar a paisagem humana de uma aldeia moribunda.

Tentei prolongar a noite pela manhã dentro, sentindo o calor do leito e saboreando uma tranquilidade que começa a desfiar-se à medida que o tempo passa. Hoje, o tempo, formalmente, mudou de ano, o que me assusta. Tentei afastar os fantasmas que sabem como ninguém atormentar a alma dos ansiosos. Vá lá, pareceu-me que compreenderam, pelo menos não os vi a rir, entreolharam os velhos ombros, acentuaram a cifose da eterna velhice e afastaram-se para um canto afastado. Não desapareceram, apenas se esconderam no seu canto, sossegados e de costas voltadas para mim. Finjo que não os vejo e eles respeitam o meu desejo. O que é que eu posso fazer? Pouco mais do que agarrar-me ao sabor de um beijo.

Faz hoje precisamente quatro anos que escrevinhei um texto invocando uma conferência que tinha feito alguns anos antes e na qual apresentei, na parte final, uma série de fotografias de John Coplans, fotógrafo britânico, falecido há alguns anos, que tinha passado os últimos vinte anos de vida a tirar fotografias do seu corpo revelando o envelhecimento que o consumia. É muito curioso ver as imagens. O artista demonstrou que existe uma arte de envelhecimento traduzida na estética dos anos a passarem no seu corpo, e, também, na forma como deve ser encarado, com naturalidade, com beleza e sem medos.
Não sou fotógrafo, mas registo, também, uma necessidade crescente de "fotografar" os meus últimos anos de vida, não com as modernas máquinas, ao alcance de qualquer um, mas através do velho processo de escrita. Não sei o que Coplans pensou quando tinha praticamente a minha idade de então. Presumo que deveria aceitar com naturalidade as alterações que entretanto foram surgindo. Eu, pessoalmente, não sou tão otimista quanto Coplans. Posso aceitar o que irá acontecer como natural, mas tenho dúvidas se o farei com naturalidade.
A ansiedade face aos acontecimentos, muitos dos quais incontroláveis, e que não dependem da nossa vontade, são assustadores. 
Talvez a escrita permita diminuir a ansiedade e contribuir para alcançar alguma forma de beleza.

Não nego que haja uma arte de envelhecimento, mas o que é preciso é envelhecer com arte.

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