Avançar para o conteúdo principal

O quadro que ainda não vi...

Gosto de arte, adoro pintura e não desdenho a boa literatura. O que é que procuro na arte? Não sei! Não deve ser só o sentido estético, mas se for deve provocar algo dentro do meu encéfalo, talvez produza substâncias que estão ligadas aos alimentos do espírito. A arte deve incluir-se nesse grupo, uma verdadeira feijoada que alimenta a mais gulosa das almas! Alimenta e dá prazer. É por isso que gosto de a ver, de a tocar e de escrever sobre ela. Desperta emoções e sensações especiais, lembranças que exalam alegria, momentos de prazer únicos ou repetitivos que me tranquilizam, que me inspiram, que me fazem sentir bem e diferente. Talvez seja isso tudo ou, então, é algo que não consigo entender e nem explicar. Gosto de a possuir. 
Recebi a notícia de que vou ser dono de mais uma obra. Aprecio o autor, um notável pintor. Não vi ainda a obra, só sei que é sobre o forte de Santa Catarina. Vinda de onde vem aceito-a com muito prazer. O que é que uma obra que ainda não vi me faz recordar? 
Um dia, em pequeno, com as sandálias nas mãos, passei junto às muralhas, saltitando em pedras e pequenos areais, com a água do mar muito próxima, do lado da praia grande para a pequena. O regresso foi mais complicado, as ondas já batiam na parede do forte e não via as pedras nem os pequenos areais. Não quis passar. Tive medo, a água assustava-me imenso. Chorei. Deram-me a mão e consegui passar aqueles metros que separavam as duas praias. Foi um alívio imenso quando ultrapassei o espaço sob o domínio da fortaleza. Depois, do outro lado, quiseram que tomasse banho, mas não tinha calções. Só sei que passado algum tempo enfiaram-me dentro de um fato de banho de uma menina. Não gostei. Protestei. Não gostava de ter alças nos meus ombros e muito menos um fato de banho de uma cor feminina. Protestei. Mas obrigaram-me a vestir na mesma. Em seguida enfiaram-me nas águas geladas com ondas monstruosas para uma criança. Protestei. Chorei. Gritei. Não queria ser sujeito àquela tortura. As ondas pareciam-me bocarras enormes a quererem comer-me. Brancas de prata, gritavam com raiva e o céu não era azul, mas de um cinzento ameaçador a completar um quadro de verdadeiro terror. Pegaram-me pela mão e fui sujeito a tremenda chicotada de uma onda horrorosa que nunca mais esqueci. Quis respirar e não consegui. Senti a sua força e raiva a passar por cima de mim. Sentei-me no areal, humilhado pelo fato de banho de rapariga, pela violência a que fui sujeito naquele banho forçado com o argumento de que fazia bem à saúde de uma criança. Isso ouvi muito bem! 
Ainda não vi o quadro. Não sei se as águas batem nas muralhas. O dia não deve ser cinzento, deve haver cor e luz. Se a água estiver presente não deve ser nenhuma onda prateada cheia de raiva, talvez seja suave, quente e tranquila. Desconfio que vai ser a melhor prenda para compensar aquele dia terrível, humilhante e doloroso para uma criança. Um dia que nunca esqueci e que não ficou por aqui...
(2014.07.27)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...