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Espaço vazio

Qualquer espaço serve para congeminar e tentar descobrir o significado de muitos acontecimentos. No local onde me encontro, consigo substituir o vazio por recordações avulsas que se vão amontoando no meu sótão. São muitas. Quero encontrar um fio condutor mas não consigo. Do meio do pó saltou a imagem de uma cidade. Não recordo o nome. Vislumbro através das janelas de um edifício soberano um espaço muito acolhedor. Luz suave, poltronas apetitosas, um ambiente tranquilo que contrastava vivamente com o cinzento e o frio que se fazia na rua. Por uns momentos encostei-me, quase, a um dos largos vidros e contemplei a imagem que emergia do interior. Um senhor, vestido com muito cuidado, bigode acinzentado e pera branca, a testemunhar algum culto, “à cavanhaque”, cabelo prateado e brilhante, como se tivesse acabado de o aparar, lia um jornal. Braços esticados, porque ainda era a altura dos jornais de folhas largas, parecia que queria abraçar o mundo. Ao lado, na mesinha, onde um candeeiro lançava raios de sol, vi um copo de conhaque cujo dourado fazia inveja ao ouro. Havia ainda um cinzeiro de porcelana que recolhia das idas à boca do leitor os restos acinzentados de um precioso e acastanhado charuto. Na altura ainda se podia fumar naquelas salas. Na rua o frio apertava à maneira enquanto o interior convidava a muita coisa, à leitura, ao descanso e ao prazer do corpo e da alma. O senhor olhou-me através da larga janela, sorriu e inclinou educadamente a cabeça. Retribui-lhe o gesto. A placa assinalava que se tratava de um clube médico. Sorri. Na altura, era novo, fiquei seduzido pelo belo quadro. Senti uma espécie de inveja e desejei que um dia gostaria de desfrutar de um enquadramento semelhante, em que a luz do rico candeeiro, muito amarela, parecia mesmo um sol portátil, seria capaz de acalmar as agruras da vida transformando o final da existência em algo semelhante como se a morte não fosse mais do que uma ilusão que se apaga sem raiva, sem medo, numa banal ocasião.
Registei uma imagem capaz de preencher qualquer espaço vazio, faça sol, faça frio, esteja à vista de qualquer um ou escondido dentro de mim.

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Fugir

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