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"Silêncio"...

Desde muito pequeno que me apercebi da forma estranha de falar das pessoas. Escapava à minha pobre razão em germinação. Passavam de conversas altas, livres, soltas e francas para sussurros baixos, inquietos e misteriosos. Um contraste violento mesmo para uma criança. Atento a certos pormenores, depressa compreendi que não se podia falar de certos assuntos e de certas pessoas. Corriam risco de virem a ser incomodados. Presenciei, mais tarde, a alguns episódios. 
Às vezes era surpreendido pelos adultos. - Estavas a ouvir? - Estava. Mas não percebia patavina. - Nunca digas a ninguém o que estávamos a dizer. Ouviste? - Ouvi. Mas porquê? - Porque, porque... Gaguejavam e terminavam, podem fazer-nos mal. - Mas quem? Perguntava. - Não interessa. Tens é de estar calado. Está bem? - Está. Eu não digo nada. E não dizia. O que é havia de dizer se não percebia grande coisa? Não sei se já tinha alma de túmulo, de qualquer modo adotei esse comportamento. Ainda hoje é a mesma, só o tempo é que é diferente. 
Com o crescer aprendi várias expressões e recomendações, tal como, "As paredes têm ouvidos". Eu bem olhava mas não via nenhuma orelha. Depois percebi o que é que queriam dizer. Até aprendi a trautear a canção, "Nem às paredes confesso". Talvez por isso só me confessei uma única vez, na véspera da comunhão solene. Neguei tudo o que o padre queria que confessasse. Nunca gostei dele. Atrevido! Não queria mais nada. Lixou-me, porque fui obrigado a fazer uma penitência. Castigou-me com uma porrada de pai-nossos e outras tantas ave-marias. Ajoelhei-me perante o altar e fingi. Devo ter rezado dois pai-nossos. Quanto às ave-marias talvez mais, quatro ou cinco. A oração era mais curta, mais simples e eu gostava da minha mãe. 
Mais tarde, muitos anos depois, puseram-se a falar aberta e livremente. Tinham cortado o freio do silêncio da língua. 
Em novo, já compreendia que os que falavam pouco e abanavam a cabeça a qualquer tipo de maioria, fosse religiosa ou do regime em vigor tinham mais privilégios do que os outros. Nunca gostei da expressão de que o melhor é estar calado, ou seja, não expressar o que uma pessoa sente. Era perigoso. Pensei que com o tempo isso desaparecesse. O tempo passa, a memória é curta e o regresso a velhas ordens processa-se como se fosse uma fatalidade. 
Hoje em dia, mergulhado numa aparente, mas cada vez mais frágil, liberdade, torna-se indigesto, para ser benévolo, emitir opiniões. Há uma certa ordem ditada pela "maioria", seja ela de que tipo for, que penaliza as pretensões de muitos. Não é conveniente ser-se conotado com um partido político, desde que não mande, obviamente, manifestar qualquer tipo de anticlericalismo ou ser-se identificado com ordens ideológicas ou pragmáticas. Enfim, é penoso viver numa sociedade que cria estereótipos a vários níveis, usando para o efeito muitos canais que noutros tempos não existiam ou não se tinha acesso. Sente-se, por vezes uma opressão social crescente; o peito aperta, a palavra fica estrangulada e alma esmorece no mais sofredor silêncio. O desequilíbrio é evidente e até doloroso. Há quem interprete este fenómeno com a designação de "espiral do silêncio". Eu pensava que em democracia não fosse possível tamanho fenómeno. Mas existe. Se olharmos para a empregabilidade, por exemplo, de um modo geral esta processa-se em amplexos estranhos, em que os mais diversos símbolos não são alheios. 
Fico-me por aqui, não por temer qualquer represália ou desejar entrar na "espiral do silêncio", mas porque estou cansado e moído por dentro. 
A alma também se cansa de viver. Quando isso acontece só lhe resta gritar e dizer: ...silêncio!

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