Avançar para o conteúdo principal

Coimbra

Gosto de gerar uma boa conversa e aprender com ela. Há dias, numa consulta de rotina, a senhora falou do que andava a fazer. Arqueóloga de profissão. Fico fascinado com certas profissões e disciplinas. Arqueologia é uma delas. - O que é que encontrou recentemente e que mereça ser descrito? A minha curiosidade emergiu com intensidade. É fascinante ver como do outro lado a felicidade começa a irradiar quando fazemos perguntas que são do seu interesse. - Ando numas escavações junto ao rio. Fundações de uma ponte que alguns afirmam ser do tempo do rei D. Manuel. Fica perto da ponte de Santa Clara. Não estou muito convencida que seja. Depois falou das pontes que houve na cidade e da subida do rio nos dois últimos milénios, doze a dezoito metros. - Sabe que três conventos foram soterrados pelo rio? Conversámos imenso. Descreveu a vinda de barcos fenícios e das caravelas até ao início do século XVII. A vida de Coimbra devia ser intensa, cheia de ritmo, de cor e de calor sempre em redor do rio. Depois foi o que foi, o rio assoreou-se e perdeu o calor e a vitalidade de outrora. Acabou por ser substituído pelas vias férreas. Foi então que lhe contei um pequeno episódio da minha infância, a propósito da primeira visita a Coimbra, porque representa o estertor final da vida intensa de um rio. Repesquei o texto, pequeno, que escrevinhei há alguns anos. Descrevo-o como se fosse a segunda parte de uma conversa que iria ter um dia. Coisas da vida, escrever no passado para ser interpretado no futuro. Acontece-me frequentemente.
Coimbra, cidade única. Cidade bela. Cidade da vida. Três conceitos que emergem ao mesmo tempo sempre que a miro. Única, porque não há nada igual. Nasceu de um ventre de amor e foi através do amor que cresceu para amar e dar lugar, durante o repouso, ao saber. Bela, porque a vida alimenta-se e reproduz-se ao som da beleza. Cidade da vida porque ensina, aprende e desperta o sentido da existência nos mais curtos e explosivos momentos, e nos longos, nostálgicos e quase perenes, períodos de reflexão.

A primeira vez que a vi era muito pequenino. Vim da minha terra, no trama. Antes de chegar à estação fiquei deslumbrado com o rio. Largo, suave e muito belo com muitas barcas com velas desfraldadas. Não fazia sol, o dia estava enevoado, mas, estranhamente, as águas brilhavam como se fosse um espelho. Vi mulheres vestidas com cores garridas ao longo do rio. Havia muita cor, muito som, muita alegria e eu julguei que o rio corria em sentido contrário. Quanto tempo, quantos anos foram precisos para eu inverter o sentido do rio? Sei lá. Não foi nada fácil. Fiquei deslumbrado com aquela paisagem. Dei a mão ao meu pai, que abriu a janela da carruagem, puxando a larga banda de couro, e, subitamente, senti a brisa, o cheiro, a vida e a cor da primeira grande cidade da minha vida. Ficou gravada na minha memória, um quadro único, um quadro que gostaria de desenhar, o mais belo quadro que até hoje vi de Coimbra, cidade única, bela, cidade da minha vida.

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite.  Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.

Nossa Senhora da Tosse

Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp...

Guerra da Flandres...

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr...