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"Almoço"...

De quando em vez tenho de mudar de rotinas, não porque seja meu desejo, mas porque as circunstâncias assim o impõem. Adapto-me com enorme facilidade e dou azo à imaginação.  O almoço de hoje obrigou-me a deslocar para norte, uma dúzia de quilómetros. Já tinha ido em tempos àquele lugar que me deixou uma boa impressão.  Com era cedo fiz tempo numa esplanada e andei a vadiar pela localidade onde outrora estudei. Mudou muito.  Olhei para a igreja e comentei: - Vê lá tu que conheço tão bem esta terra e nunca entrei na igreja, nem mesmo quando andei por aqui. Sou tão descuidado. Bem, o meu descuido prende-se com o facto de quando passo não tenho tempo ou, então, o templo estar encerrado. Vi a porta entreaberta. Não perdi o momento. Não fui criticado, apenas ouvi mais uma vez a mesma interjeição: - Mais uma! São todas iguais. - Não são nada. São todas diferentes. Entrei e verifiquei que era pequena, uma só nave, com tetos pintados com motivos religiosos muito bonitos. As imagens eram

"Silêncio"...

Pouco há a fazer num sábado à noite no meio de uma povoação em processo de desertificação acelerada. Dar um pequeno passeio, passando pelos mesmos locais, sempre na esperança de encontrar algo diferente ou um sinal a recordar os velhos tempos. Mas nada. Não há pessoas, apenas nos cruzámos com quatro ou cinco. Umas são taciturnas, com caras perdidas, outras são as clássicas, tipo figurantes, que recolhem as suas casas e depois são os fantasmas aos quais se juntam algumas almas que surgem sempre que as recordamos. Para quê? Para justificar uma curta conversa e para lembrar pequenas epopeias de um passado esquecido. Não sei se somos nós que as recordamos ou se são elas que nos chamam e atiçam as nossas memórias. Tanto faz. As recordações servem para isso mesmo, justificar curtos momentos à espera de se libertarem de vez.  Sentado na varanda, a apanhar banhos de brisa fresca, olho para as nuvens que bocejam de indiferença. Não sei se têm frio. Não se mexem, adormecem ao som do estranho

"Máscara de porcelana"...

Uma curta entrevista. A senhora, de chapéu e sentada na praça de toiros, foi interpelada pela jornalista. Estive atento. Falou, comentou, expressou oralmente os seus sentimentos e emoções. Ouvi com atenção. Assustei-me. As suas frases não eram acompanhadas da esperada expressão facial, que documenta, acompanha, reforça e fala de forma particular. Apenas o lábio inferior se mexia. O resto não. Nem as pregas ao redor dos olhos piscavam ou soluçavam. Nada. Apenas a mandíbula descia ou subia, acompanhando as falas. Conseguia transmitir um sorriso sempre igual, uma isolinha a raiar o patético. Acabei por saber que já era avó. Uma avó com cara de porcelana a raiar os trinta e poucos anos. Para que serve uma face destas? Para brincar às bonecas? A senhora irá tombar num envelhecimento aparvalhado oferecido pelo tempo. Envelhecimento enxertado numa artificialidade sem sentido. Onde estão as rugas? Onde está a pele macilenta? Onde está a sombra da vida passada? Onde estão as emoções? Como pode

Cansam...

O sol acaba de aparecer neste instante. Acordou tarde e ainda está sonolento. Tanto faz, não aquece a alma fria, não faz sonhar no novo dia, apenas consigo sentir um estranho lamentar. Não me ouve. Tanto faz. Eu vejo o que anda em meu redor, tanta falta de paz. Horrível. Cansa ler o que a gente humana faz. Desgraças. Olho pela janela e consolo-me com a visão de vinhas vestidas de verde desejosas em libertar os seus frutos e deste modo conseguir dar alguma alegria no momento certo, na véspera do nascer do belo dia. Tarda o seu nascer. Arrasta-se como um fantasma perdido à procura do seu destino. Olho em redor e vejo seres humanos. Estranhos seres. Cansam. Muito. Começo a cansar-me de os ver, de os ouvir e de os sentir. Cansam. Gostava de fugir. Gostava de passear de braço dado com almas sem dor, sem sorriso, sem calor, apenas almas doces, cheias de paz errando pelo universo sem medo, sem esperança, sem sentir, a não ser a paz do não existir. 

Sentado no chão...

Sentado no chão, isolado do mundo e de qualquer inspiração. Deixo-me embalar pelas recordações de outros tempos em que não sabia onde ficava o futuro. Com o tempo encontrei-o. Não o aprecio. Faz-me recordar os velhos momentos em que os pensamentos morriam assim que acabavam de nascer. Não deixavam grandes marcas, apenas algumas cicatrizes que o tempo faria o favor de temperar. Recordo esses momentos atribulados, mas com algum sentido, porque era tão natural como a própria vida. Não tinha termo de comparação, nem sofria da síndrome da ilusão, tudo andava ao sabor do vento e do encanto do momento. Sentado no chão, debulhava o velho termo comendo aquilo que a minha mãe tinha preparado à noite, a refeição do dia seguinte. Sentado no muro, sentado no pinhal, sentado numa pedra ou em qualquer lugar, comia sem saborear o conteúdo. Agora consigo recordar o seu sabor, algo insubstituível, porque tinha o amor da minha mãe. Alimentava o meu corpo e semeava a recordação no futuro. Gostava do s

Do “De Profundis” ao Pinóquio"...

Mais um dia. Não muito diferente de outros. Cheguei a casa e tinha à minha espera a neta mais nova. Vi-a de longe junto da entrada com a porta entreaberta. Uma das minhas três delícias. A mais nova dos três. Acabou o seu primeiro ano de escolaridade. Novinha de mais para a empresa fez o que pode, mas fez, e ainda vai fazer mais. Adoro o seu empenho e forma de lutar. Promete. Depois dos doces e contínuos beijinhos premiei-a com a aquisição de mais dois livrinhos da sua coleção. - Ela já me leu um livro. Sozinha. Ontem até me adormeceu. Disse a mãe. - Ai sim? Então quero ver. Leonor lê uma página ou duas. A menina agarrou num livrinho e pôs-se a ler com fluência intercalada por pausas mais ou menos prolongadas para decifrar o que estava escrito. Mas leu. Ouvi com atenção e com alguma emoção, porque estava a ler para o avô a história do Pinóquio. Uma sensação muito especial invadiu-me no momento ao relembrar o meu primeiro livro. Em tempos, há cerca de meia dúzia de anos, escrevi, nest

Paz...

Por onde quero que vá esbarro invariavelmente com a sua figura. Parece que não há canto, templo, castelo, vila, cidade, rio ou fonte de recordações que não a encontre.  Sinto o bater de um sino muito poderoso a dar as duas da tarde. Hoje, sem querer, mudei de piso. Escolhi outro silêncio. Um outro templo não muito afastado do habitual.  Não sabia que naquele local tinham sido feitas as pazes entre o pai e o filho. A sua intercessão no início de uma batalha fratricida conseguiu evitar o pior. A sua coragem e o seu amor pelo marido, pelo filho e pelo povo foi determinante para a estabilidade e a paz de um Portugal ainda criança. São curiosas as suas imagens e passagens com as quais tropeço frequentemente. Já me sentei em locais onde esteve. Noto que os seus pensamentos vivem sem se importar com o tempo. Alimenta almas e esperanças de quem se vê deserdado pelo mundo das ilusões. É raro o dia, seja qual for a sua medida, que não a encontre. O país está impregnado do seu aroma, da sua