Do “De Profundis” ao Pinóquio"...

Mais um dia. Não muito diferente de outros. Cheguei a casa e tinha à minha espera a neta mais nova. Vi-a de longe junto da entrada com a porta entreaberta. Uma das minhas três delícias. A mais nova dos três. Acabou o seu primeiro ano de escolaridade. Novinha de mais para a empresa fez o que pode, mas fez, e ainda vai fazer mais. Adoro o seu empenho e forma de lutar. Promete. Depois dos doces e contínuos beijinhos premiei-a com a aquisição de mais dois livrinhos da sua coleção. - Ela já me leu um livro. Sozinha. Ontem até me adormeceu. Disse a mãe. - Ai sim? Então quero ver. Leonor lê uma página ou duas. A menina agarrou num livrinho e pôs-se a ler com fluência intercalada por pausas mais ou menos prolongadas para decifrar o que estava escrito. Mas leu. Ouvi com atenção e com alguma emoção, porque estava a ler para o avô a história do Pinóquio. Uma sensação muito especial invadiu-me no momento ao relembrar o meu primeiro livro. Em tempos, há cerca de meia dúzia de anos, escrevi, nesta altura, um texto, “Do De Profundis ao Pinóquio...”. Fui buscá-lo. Li-o novamente. Transcrevo-o e ofereço-o à minha neta, para que um dia o possa ler, e quem sabe se outros, no futuro, também o leiam. Ler é bom. Ler é aprender. Ler é ensinar. Ler é viver. Viva a leitura!
“Fim de uma tarde de verão. A luminosidade atenua-se no encanto da penumbra anunciada. O azul do céu despede-se ligeiramente corado de vergonha, penetrando-me através de uma atmosfera límpida acossada por uma brisa fresca. A lua, prenhe de satisfação, anuncia a chegada da plenitude, desferindo brilhos arrogantes, ao mesmo tempo que desliza com graciosidade ascendente. As flores dos canteiros suspensos absorvem as gotas da água da ribeira, enfeitando o espaço envolvente onde se respira liberdade. Entretenho-me a escrever estas linhas, enquanto o “De Profundis”, de Óscar Wilde, poisa, aberto, no meu regaço, oferecendo belos e profundos pensamentos eivados de dor, de sofrimento, de alegria, de múltiplos sentimentos, e de esperança, em suma, pura poesia. Leio nessas páginas uma pequena passagem que só um génio sensível é capaz de oferecer ao seu irmão: “Posso ser perfeitamente feliz sozinho. Com liberdade, flores, livros e a lua quem não poderia ser perfeitamente feliz?”. Wilde escreveu esta obra quando esteve preso. Não vislumbro que pudesse acariciar quaisquer flores e, às tantas, poucos seriam os livros que teria à sua disposição. Quanto à lua, decerto que lha entaiparam.
Se não tivesse sido preso nunca poderia apreciar esta preciosidade. A infelicidade do autor passou a ser fonte de felicidade de muitos. Livro, o guardião da alma humana. Adoro livros desde sempre, mesmo antes de saber o significado das palavras.
O meu primeiro livro surgiu num momento bem definido. Um dia levaram-me ao enfermeiro “Pedrinho”, de voz tonitruante, velho, o “faz-tudo”, que aplacava, tratava e ajudava os sofredores do local. As anginas atacavam-me e, na altura, o medo do garrotilho era uma constante. Assustei-me com o espaço, por cima da padaria. Tudo branco, até o cabelo do “Pedrinho”. A noite já tinha caído naquele inverno. Olhou para mim e viu que devia estar assustado como um coelho à vista de um furão. Apertava as mãos protetoras com as minhas. – Olha lá meu rapaz, eu vou pintar a tua garganta com esta tinta. E mostrou-me uma zaragatoa com algodão na ponta que era branco mas que de repente ficou castanho dourado com o líquido que lhe botou. Empunhou o instrumento de tortura com uma das mãos e com a outra mostrou-me um livro com figuras. – Conheces a história do Pinóquio? – Pinóquio?! Quem é? Respondi cheio de medo. – Ah! Não sabes! É a história de um boneco de madeira que... E à medida que me ia contando a história, pediu-me para abrir a boca na qual começou a escarafunchar à vontade e repetidamente. Causou-me vómitos e uma sensação de sabor terrível que demorou muito tempo a passar. Mas aguentei tudo, porque estava anestesiado pela história, a primeira vez que a ouvi. No fim do tormento já conhecia a história que me encantou sobremaneira. Entretanto fui atacado de um desejo louco de querer ficar com o livro com as belas imagens do Pinóquio, do seu pai e do grilo. Mas o livro era do senhor! Mesmo assim passou-me pela ideia que o livro deveria ser uma coisa cheia de magia, capaz de contar histórias. Na altura, não tinha a ideia do que era um livro e que pudesse ter sido feito por alguém. Não! Julgava que o livro é que tinha criado as palavras, as figuras coloridas e a história! Foi esta a primeira impressão consciente da existência de um livro. Ao sair ouvi o “Pedrinho”: - Se disseres a verdade e o teu nariz não crescer eu dou-te o livro! Doeu-te alguma coisa quando te pincelei a garganta? Foi então que, preventivamente, coloquei a mão no nariz e pressionei-o com força e disse: - Não senhor! – Hum! Então toma lá! Fiquei radiante de felicidade e quis sair imediatamente do consultório, sempre com a mão a tapar o nariz até chegar a casa, que ficava a escassos cem metros. Assim que chegámos, perguntei: - O meu nariz está muito comprido? Olharam, olharam e disseram: - Um pouco, mas não se nota muito. Amanhã já deverá estar normal! Um alívio.
Senti pela primeira vez a sensação de ser a pessoa mais feliz do mundo, tinha um livro, mesmo sem conhecer as letras. Nem o amargo da mistela, que ainda pairava nas minhas goelas, foi suficiente para destruir aquele momento que se tem repetido incessantemente desde aquele dia até hoje.
E nunca mais precisei de pôr a mão no nariz...”

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