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A miniatura e o vinho

O encanto de viajar ao longo do rio obrigou-me a fazer pazes com a natureza. Não é que me tenha zangado com ela, mas, o facto de representar a prisão de um mundo sem grande interesse, irrita-me de vez em quando. Sentir a beleza a entrar pelos poros e ouvir com a pele o veludo do verde e a sensualidade da água tranquila, esquecido dos olhos perdidos no horizonte que constantemente mudava de formas, estimulou-me o apetite para continuar a viajar sempre à procura de novas paisagens. As naturais sobrepunham-se umas às outras, agora faltavam as humanas, com as suas grandezas, misérias, tristezas e criatividade sem limites. Não conhecia a povoação. Pobre, pequena e esquecida. Quem diria que algo semelhante fosse polo de uma viajem dedicada ao mundo perdido. Depois de uma pequena volta pela localidade, onde o passado reluzia como se fosse senhora do tempo, reparei na existência de um pequeno museu onde decorria uma exposição. Fascinado pela expectativa de poder encontrar algo que satisfizes

Liberdade de ocasião

Há sensações que ganham peso e forma com o tempo. Viajar sob um teto de nuvens tristes ilude-me de forma particular. A liberdade desaparece rapidamente. Faz-me recordar que estou aprisionado num triste calhau perdido no firmamento. Não há nada pior do que sentir ser-se prisioneiro, quer seja da vida, do tempo ou do universo. O peso do céu adensava-se a cada minuto ameaçando chuva e tristeza. Não fui longe, temendo a ameaça que se avizinhava. No regresso olhei para algumas figuras que ondulavam sem destino. Outras pairavam nas bermas com olhares perdidos sobre si próprias. Vi uma mulher nova destroçada pela vida que não teve. Perdida e esquecida de si mesmo. O meu olhar acompanhou-a por brevíssimos segundos. Foram suficientes para saber que não se interessa pelo futuro, pela saúde, pela harmonia e nem por qualquer fantasia. Talvez desejasse acalmar a fúria da privação e o incómodo de não ser ainda horas de se libertar para o mundo em que não não há nada, nem razão, nem coração, nem esp

Paganismo

Gosto imenso de apreciar templos religiosos. A arquitetura, a história, o silêncio, as imagens, as esculturas, os paramentos, a própria religiosidade, vertida em momentos de alegria, de aflição e de dor, e, sobretudo, o tremendo e esbelto paganismo à vista de quem quer ver a vida humana nos seus medos, desejos, crenças e aspirações, atraem-me de forma particular. A única coisa que não encontro é a calçada para os patamares divinos ou o bafejar macilento de qualquer Deus. Por aqui não anda, nem andará. Sorrio, não com desprezo, obviamente, dos que procuram o silêncio miraculoso da cruz ou das belas e delicadas estátuas esculpidas com prazer e fé, mas com vontade de fazer o mesmo que eles, nem que fosse para parecer mais um neste vale descuidado e desprotegido de qualquer atenção divina. Imagino que tudo não passa de uma interessante e criativa encenação. O que vejo é idêntico aos velhos templos pagãos com estatuetas de deuses vingativos e brutos ou de deusas sedutoras que prometiam os

Nossa Senhora da Tosse

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Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp

Amargura

O tempo provoca por vezes alucinações. É difícil de entender. Nunca se sabe quando é que a realidade se sobrepõe à fantasia ou quando esta nasce suja de dor do ventre da primeira. É difícil de entender. O que resta, ao fim de muitos anos, é apenas o sentir, uma espécie de desejo adormecido que viveu escondido no casulo da alma; a lembrança da amargura de um dia ter sentido o mais estranho calafrio.   Nesse dia o meu colega informou-me do advir. A tragédia do momento já tinha sido temperada. No entanto, a próxima, longa e dolorosa, estava devidamente equacionada. Um arrepio profundo e espinhoso fez afugentar o sol luminoso de um dia de inverno. Nunca o sol lançou tantos raios de gelo iluminados de ouro falso, o ouro de velhos deuses. Não consegui pensar nem o que fazer. Depois, compreendi demasiado bem o que iria acontecer. Não me recordo bem do que se passou a seguir. Apenas me trespassou a mente a fantasia de um desejo sem sentido, próprio de quem se sente perdido. A leitura de alg

Rocha

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Recordo, quando ia para a faculdade, ao subir a rua Padre António Lopes Vieira, ver numa casa, que resistiu à fúria da renovação da velha alta, uma placa a indicar a existência de um ateliê de um artista plástico. Fixei o seu nome. Memória é coisa que nunca me faltou, e não altura muito menos. Depois, com o tempo, fui ouvindo e até vendo um ou outro quadro.  Os artistas foram sempre um motivo febril da minha atenção. Não há nada que consiga baixar a temperatura que, por vezes, chega a causar as mais estranhas alucinações. Algo que só a arte consegue. Olhava para o nome estampado na placa e pensava como seria agradável um dia ter um quadro do artista. Fiquei pelo desejo que nunca esqueci. É difícil esquecer o que se pretende numa vida cheia de ilusões que se desfazem a todo o momento em pó.  Ao fim de muitos anos, mesmo depois de ter reparado que a placa tinha desaparecido, o que me causou alguma apreensão, fui confrontado com uma oferta especial, uma aguarela do autor. Nunca d

Calor vadio

O calor suave de uma tarde a vogar livre e à-vontade, embalado em sussurros de brisas sem destino, tranquiliza o olhar e seduz o pensar. Basta parar à sombra de velhas árvores a fermentar lentamente o sol da vida. Não sonham. Não se inquietam. Apenas respiram e dormem sem sonhar e sem sofrer.