A miniatura e o vinho


O encanto de viajar ao longo do rio obrigou-me a fazer pazes com a natureza. Não é que me tenha zangado com ela, mas, o facto de representar a prisão de um mundo sem grande interesse, irrita-me de vez em quando. Sentir a beleza a entrar pelos poros e ouvir com a pele o veludo do verde e a sensualidade da água tranquila, esquecido dos olhos perdidos no horizonte que constantemente mudava de formas, estimulou-me o apetite para continuar a viajar sempre à procura de novas paisagens. As naturais sobrepunham-se umas às outras, agora faltavam as humanas, com as suas grandezas, misérias, tristezas e criatividade sem limites.
Não conhecia a povoação. Pobre, pequena e esquecida. Quem diria que algo semelhante fosse polo de uma viajem dedicada ao mundo perdido. Depois de uma pequena volta pela localidade, onde o passado reluzia como se fosse senhora do tempo, reparei na existência de um pequeno museu onde decorria uma exposição. Fascinado pela expectativa de poder encontrar algo que satisfizesse a sede da beleza dirigi-me ao local. O senhor, que tinha reparado antes, junto da escadaria de acesso e que interpretei como sendo o vigilante, era, na verdade, o autor da exposição. Antes de iniciar a subida íngreme vi o tradicional café com gente ociosa lançando olhares inquisidores sobre os forasteiros. No passeio, uma mulher gorda e sem dentes falava ao telemóvel em voz muito alta com um discurso próprio de quem está a namorar ou a ser convidada para práticas amorosas. Um ridículo que contrastava com a curiosidade vertida da velha barbearia onde o virtuoso, sentado na cadeira de través, ocupava o tempo numa conversa de ocasião. Não passámos despercebidos. No museu, que afinal não tinha conteúdo que justificasse essa designação, deparámo-nos com um uma exposição de arte em que pontuavam quadros, artesanato e objetos feitos com materiais diversos. Via-se que se tratava de um amador. De qualquer maneira, a simpatia do autor, aliada a uma visível humildade e a uma escondida tristeza, propiciou alguma informação digna de registo. De tudo o que estávamos a ver, duas obras atraíram-nos de forma particular, um quadro impressionista, óleo a pastel, e a miniatura de uma casa de montanha feita de xisto onde todos os pormenores, à escala, estavam devidamente representados.
A arte nem sempre é tomada em linha de conta, quer por falta de interesse quer por causa do preço. Uma associação negativa que entristece e não alimenta a pobreza dos artistas. Não hesitei em adquirir a miniatura. Fi-lo porque é bela, esteticamente atraente e para ajudar quem precisa. Registo o agrado que a compra produziu no autor. No regresso, ao chegar ao carro, fui interpelado pelo "barbeiro" que começou a falar de vinhos. Tinha produção própria e estava disposta a vender os seus produtos, vinho, azeite e mel. Expliquei que não estava interessado, mas a forma como manejava o verbo, de forma semelhante ou ainda melhor do que com a navalha, levou-me a entabular uma pequena conversa. Senti que à falta de clientes nada melhor do que fazer negócio com os forasteiros. Se subiram de mãos vazias e regressaram com um embrulho apreciável nas mãos, então, também podiam levar vinho. Não lhe fiz a desfeita. Abriu a porta de uma loja perto da barbearia. No interior, desorganizado, estava um garrafão de plástico em cima de uma mesa. Ao lado um copo, encardido por décadas de vinho tinto, esperava executar a sua função. O barbeiro despejou um pouco, talvez com a intenção de que apreciasse a sua "qualidade", mas hesitou perante o meu espanto e convidou-me apenas a cheirá-lo. Fiz o que me pedia, mas não me cheirou grande coisa. Para abreviar a conversa concordei em levar um garrafão. - Só um? Ainda se vai arrepender. Disse depois de lhe mostrar a nota de dez euros. Ainda tentou traduzir o troco em mais um garrafão. Avancei que noutra altura, quando regressasse, logo se veria. Foi assim que consegui substituir uma barba por uma garrafão de plástico cheio de um vinho "especial". Sorri perante tanta verborreia. O barbeiro era mesmo um artista. Até conseguiu falar de alguém que conheceu em Coimbra e que foi sepultado na terra. Cinco euros não é grande prejuízo e compensou bastante bem uma conversa retirada de alguns dos meus escritores preferidos que viveram para aquelas bandas. Sorri. Uma partida do tempo.
O vinho? Uma zurrapa, obviamente.
A miniatura? Uma obra de arte, obviamente.

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