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Amargura


O tempo provoca por vezes alucinações. É difícil de entender. Nunca se sabe quando é que a realidade se sobrepõe à fantasia ou quando esta nasce suja de dor do ventre da primeira. É difícil de entender. O que resta, ao fim de muitos anos, é apenas o sentir, uma espécie de desejo adormecido que viveu escondido no casulo da alma; a lembrança da amargura de um dia ter sentido o mais estranho calafrio.  
Nesse dia o meu colega informou-me do advir. A tragédia do momento já tinha sido temperada. No entanto, a próxima, longa e dolorosa, estava devidamente equacionada. Um arrepio profundo e espinhoso fez afugentar o sol luminoso de um dia de inverno. Nunca o sol lançou tantos raios de gelo iluminados de ouro falso, o ouro de velhos deuses.
Não consegui pensar nem o que fazer. Depois, compreendi demasiado bem o que iria acontecer. Não me recordo bem do que se passou a seguir. Apenas me trespassou a mente a fantasia de um desejo sem sentido, próprio de quem se sente perdido. A leitura de alguma romaria, historieta e poesia associadas ao encanto de um local desconhecido levou-me a desejar vê-lo mesmo com a esperança do meu pedido morto à nascença.
Tantas vezes passei perto do local. Tantas. Tantas vezes estive prestes a poder vê-lo e nunca fui. Nunca me deu para matar a minha sede de curiosidade. Para quê? Pensei. Para nada, comentava. Para nada. Recordava apenas breves segundos de imaginação que não conseguiram acalmar o meu coração. Impossível. Os milagres são meras fantasias. Nem isso, são apenas ilusões sem sentido, uma espécie de jogo em que o divino se ri ou se diverte com o ser mais digno. Só pode, claro. Só pode. Viver neste mundo não serve o propósito de respeitar    nenhum desses estranhos senhores cobardemente escondidos no universo infinito.
Passaram trinta anos depois do calafrio sentido no belo dia cheio de sol de inverno. Raios de sol gelados feriram profundamente o meu coração. A tentativa fugaz de um bálsamo esvaziou-se subitamente na minha mão. Recordo com perfeição esse dia. Uma recordação. Realidade ou fantasia de uma fugaz devoção? Não interessa.
Hoje, sem me aperceber fui a esse local, remoto, estranho, belo, cheio de enigmas e de muitos séculos de vida, de morte, de dor, de alegria e de esperança. No fundo, um espaço de fantasia criado pela imaginação dos homens. Um espaço cheio de mistérios onde línguas de almas mudas desenharam, esculpiram e deixaram incrustadas as mais sedosas fibras da vida e da morte para encanto dos que sabem ler e para desespero de qualquer ser divino. Afinal, valeu a pena vê-lo, não pelo que fez, porque não o poderia fazer, mas pela linguagem da vida, a forma mais enigmática e bela de libertar o mais estranho sentir, a lembrança da amargura de um dia ter sentido um profundo calafrio.  

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